Por Leonardo Boff
No dia 22 de
abril de 2009 realizou-se a 63ºAssembleia da Onu, cujo objeto de discussão era
se convinha chamar a Terra de Mãe Terra. Caso fosse aprovada a ideia, o dia 22
de abril não seria mais simplesmente o Dia da Terra, como a patir de vários
anos se havia introduzido, mas o Dia da Mãe Terra. O Presidente da
Bolívia Evo Morales Ayma, em nome das nações indígenas, fez o discurso
mais de ordem política, provocando grande aplauso da platéia. A mim coube a
tarefa de fazer a fundamentação filosófica-ecológica desta proposta. O discurso
recebeu ampla acolhida de forma que, por unanimidade, se tomou a resolução de
celebrar sempre o dia 22 de abril como o Dia da Mâe Terra. O Papa
Francisco em sua encíclica Laudato Si: como cuidar da Casa Comum assumiu
esta expressão Mãe Terra. Publico aqui o discurso proferido nesta 63º
Assembleia Geral da Onu de 22/04/2009 para reforçar esta compreensão
verdadeiramente revolucionária, pois transforma nossa visão da Terra, como mãe
e correspondenteemente os comportamentos face a ela. Eis o texto do discurso
feito aos 192 representantes dos povos que compõem a Assembleia da ONU. É
excusado dizer que os dados correspondem àquela data, pois hoje são outros com
uma natueza muito mais grave.
***********************
No de 2000 a
Carta da Terra nos fazia esta severa advertência:: «Estamos num momento
crítico da história da Terra, na qual a humanidade deve escolher o seu futuro…A
escolha nossa é: ou formamos uma aliança global para cuidar da Teerra e
cuidarnos uns dos outros ou arriscamos a nossa própria destruição e a da
diversidade da vida”(Preâmbulo).
Se a crise
econômico-financeira é preocupante, a crise da insustentabilidade da Terra se
apresenta ameaçadora. Os cientistas que acompanham o estado da Terra,
especialmente a Global Foot Print Network têm falado do Earth
Overshoot Day, do dia em que foram ultrapassados os limites da Terra. E
isso ocorreu exatamente no dia 23 de setembro de de 2008, uma semana após o
estouro da crise econômico-financeira nos EUA. A Terra ultrapassou em 40% sua
capacidade de reposição dos recursos necessários para as demandas humanas.
Neste momento necessitamos mais de uma Terra para atender a nossa subsistência.
Como
garantir a sustentabilidade da Terra já que esta é a premissa para resolver as
demais crises: a social, a alimentária, a energética e a climática? Agora já
não temos uma Arca de Noé que salve alguns e deixa perecer os demais. Todos
devemos nos salvar juntos.
Como
asseverou recentemente com muita propriedade o Secretário Geral desta Casa, Ban
Ki-Moon: ”não podemos deixar que o urgente comprometa o essencial”. O urgente é
resolver o caos econômico, mas o essencial é garantir a vitalidade e a
integridade do planeta Terra. É decisivo superar a crise financeira, porém o
imprescindível e essencial é: como vamos salvar a Casa Comum e a Humanidade que
é parte dela? Esta é a razão para termos adotado a resolução sobre o Dia
Internacional da Mãe Terra que, a partir de agora, se celebrará no dia 22 de
abril de cada ano.
Dado o
agravamento da situação ambiental, especialmente do aquecimento global, temos
que atuar juntos e rápido. Não temos tempo a perder nem nos é permitido errar.
Caso contrário, há o risco de que a Terra possa continuar mas sem nós.
Em nome da
Terra, nossa Mãe, de seus filhos e filhas sofredores e dos demais membros da
comunidade de vida, quero agradecer a esta 63º Assembleia Geral da ONU por
haver sabiamente aprovado esta resolução.
Neste
contexto, me permito fazer uma breve apresentação do fundamento que sustenta a
ideia da Terra como nossa Mãe.
Desde da
mais alta ancestralidade, as culturas e religiões sempre têm testemunhado a
crença na Terra como Grande Mãe, Magna Mater, Inana e Pachamama.
Os povos
originários de ontem e de hoje tinham e têm clara consciência de que a Terra é
geradora de todos os viventes. Somente um ser vivo pode produzir vida em suas
mais diferentes formas. A Terra é, pois, nossa Mãe universal.
Durante
séculos e séculos prevaleceu esta visão até a emergência recente do espírito
científico no século XVI. A partir de então, a Terra já não é mais considerada
como Mãe, senão como uma realidade sem espírito, entregue ao ser humano para
ser submetida, mesmo com violência. A mãe-natureza que devia ser respeitada se
transformou em natureza-selvagem que deve ser dominada. A Terra se viu
convertida num baú cheio de recursos naturais, disponíveis para a acumulação e
o consumo humano.
Neste novo
paradigma não se coloca a questão dos limites de suporte do sistema-Terra nem
dos bens e serviços naturais não renováveis. Pressupunha-se que os recursos
seriam infinitos e que poderíamos ir crescendo ilimitadamente na direção do
futuro. O que efetivamente é uma grande ilusão.
A
preocupação principal era e é: como ganhar mais no tempo mais rápido possível e
com um investimento menor? A realização histórica deste propósito fez surgir um
arquipélago de riqueza rodeado por um mar de miséria.
O PNUD de
2007-2008 o confirma: os 20% mais ricos do mundo absorvem 82,4% de todas as
riquezas da Terra enquanto os 20% mais pobres têm que se contentar com apenas
1,6%. Estes dados provam que uma ínfima minoria monopoliza o consumo e controla
os processos econômicos que implicam pilhagem da natureza e grande
injustiça social.
Entretanto,
a partir dos tardios anos 70 do século passado se tem imposto a constatação de
que um planeta pequeno, velho e limitado como a Terra já não pode suportar um
projeto ilimitado. Faz-se urgente outro modelo que tenha como eixo a Terra, a
vida e o bem viver planetário no quadro de um espírito de colaboração, de
responsabilidade coletiva e de cuidado.
Agora a
preocupação central é: como viver e produzir em harmonia com a Terra, com os
seres humanos, como o universo e com a Última Realidade, distribuindo
equitativamente os benefícios entre todos e alimentando solidariedade para com
as gerações presentes e futuras? Como viver mais com menos?
Foi neste
contexto que se resgatou a visão da Terra como Mãe. Já não é mais a percepção
dos antigos mas uma constatação empírica e científica. Foi mérito dos
cientistas e sábios como Vladimir Vernadsky, James Lovelock, Lynn Margulis e
José Lutzenberger nos anos 70 do século passado, ter demostrado que a Terra é
um superorganismo vivo que se autoregula. Ela articula permanentemente o
físico, o químico e o biológico de forma tão sutil e equilibrada que, sob a luz
do sol, propicia a produção e a manutenção de todas as formas de vida. Por
milhões de anos o nível do oxigênio, essencial para a vida, se mantem em 21%, o
nitrogênio, decisivo para o crescimento, em 79% e o nível de sal dos oceanos em
3,4%. E assim todos os elementos necessários para a vida. Não é que sobre a
Terra haja vida. A Terra mesma é viva, chamada de Gaia, a deusa grega para
significar a Terra viva.
Que toda a
Terra está cheia de vida no-lo comprova o conhecido biólogo Edward O. Wilson.
Escreve ele: ”Num grama de terra ou seja, em menos de um punhado, vivem cerca
de dez bilhões de bactérias pertencentes até a seis mil espécies diferentes”.
Efetivamente, a Terra é Mãe fecunda.
A Terra
existe já há 4, 4 bilhões de anos. Num momento avançado de sua evolução, de sua
complexidade e de sua auto-organização, começou a sentir, a pensar e a amar.
Foi quando emergiu o ser humano. Com razão nas línguas ocidentais homo/homem
vem de húmus, terra fecunda. E em hebraico Adam se deriva de adamah,
terra cultivável. Por isso, o ser humano é a própria Terra que anda, que sente,
que pensa e que ama, como dizia o poeta indígena e cantador argentino Atahualpa
Yupanqui.
A visão dos
astronautas confirma a simbiose entre Terra e Humanidade. De suas naves
espaciais testemunhavam de forma comovedora: ”daqui, contemplando este
resplandecente planeta azul-branco, não se percebe nenhuma diferença entre Terra
e Humanidade. Formam uma única entidade”. Mais que como povos, nações e etnias
devemos nos entender como criaturas da Terra, como filho e filhas da Mãe comum.
Entretanto,
olhando a Terra mais de perto, nos damos conta de que ela se encontra
crucificada. Possui o rosto do terceiro e quarto mundo, porque vive
sistematicamente agredida. Quase a metade de seus filhos e filhas padecem fome
e sede e são condenados a morrer antes do tempo. A cada quatro segundos,
consoante dados da própria ONU, morre uma pessoa estritamente de fome.
Por isso,
são expressões de amor à Mãe Terra, as políticas sociais de muitos países, como
por exemplo, de meu pais, o Brasil, sob o governo do Presidente Luís Inácio
Lula da Silva, particularmente o programa Fome Zero e Bolsa Família Em seis
anos se devolveu vida e dignidade a 50 milhões de pessoas que antes viviam na
pobreza e na fome.
Temos que
baixar a Terra da cruz e ressuscitá-la. Para esta tarefa gigantesca somos
inspirados por um documento precioso: a Carta da Terra. Nasceu da
sociedade civil mundial. Em sua elaboração envolveu mais de cem mil pessoas de
46 países. Em 2003 uma resolução da UNESCO a apresentou “como um instrumento
educativo e uma referência ética para o desenvolvimento sustentável”.
Participaram ativamente de sua concepção Mikhail Gorbachev, Maurice Strong e
Steven Rockfeller e eu mesmo entre otros. A Carta entende a Terra como dotada
de vida e como nosso Lar Comum. Apresenta pautas concretas que podem salvá-la,
cuidando-a com compreensão, com compaixão e com amor, como cabe a toda mãe.
Oxalá, um dia, esta Carta da Terra, possa ser apresentada, discutida e
enriquecida por esta Assembleia Geral. Caso seja aprovada, teríamos um
documento oficial sobre a dignidade da Terra junto com a declaração sobre a
dignidade da pessoa humana.
Mas cabe
fazer uma advertência. Para sentir a Terra como Mãe não é suficiente a razão
dominante que é funcional e instrumental. Necessitamos enriquecê-la com a razão
sensível, emocional e cordial, pois ai se enraíza o sentimento profundo, se
elaboram os valores, se cultivam o cuidado essencial, a compaixão e os sonhos
que nos inspiram ações salvadoras. Nossa missão, no conjunto dos seres, é a de
ser os guardiães e cuidadores desta sagrada herança que recebemos do universo:
a Terra, nossa Mãe.
Para
terminar permito-me fazer uma sugestão: que se coloque na cúpula interna da
Assembleia uma destas imagens belíssimas e plásticas da Terra vista a partir de
fora da Terra. Suspensa no transfundo negro do universo, ela evoca em nós
sentimentos de reverência e de mútua pertença. Ao contemplá-la, tomamos
consciência de que ai está o nosso Lar Comum.
Pediria
ainda que fosse aprovada uma recomendação de que no dia 22 de abril, dia
Internacional da Mãe Terra, se fizesse um momento de silêncio em todos os lugares
públicos, nas escolas, nas fábricas, nos escritórios, nos parlamentos para que
nossos corações entrem em sintonia com o coração de nossa Mãe Terra.
Concluo. Tal
como está, a Terra não pode continuar. É urgente que mudemos nossas mentes e
nossos corações, nosso modo de produção e nosso padrão de consumo, caso
quisermos ter um futuro de esperança. A solução para a Terra não cai do céu.
Ela será o resultado de uma coalizão de forças em torno a uma consciência
ecológica integral, uns valores éticos multiculturais, uns fins humanísticos e
um novo sentido de ser. Só assim honraremos nossa Casa Comum, a Terra, nossa
grande generosa Mãe.
Muito
obrigado.
Prof. Dr.Dr.Leonardo
Boff
Representante
do Brasil na Assembleia da ONU e membro da Comissão da Carta da Terra.
Discurso
proferido no dia 22 de Abril de 2009 na 63º Assembleia Geral da ONU.
Nenhum comentário:
Postar um comentário