por Frei Betto
Sexta-feira
da Paixão. Frei Nicolau, pároco da igreja de São Domingos, na capital paulista,
pediu-me para encontrar um Cristo sofrido para a procissão do Senhor morto. No
templo, o clima litúrgico, com as imagens cobertas de roxo, recordava a prisão,
a tortura e a morte de Jesus.
Fui
ao Bexiga atrás do Paco, cenógrafo que trouxera da Espanha a mania de
colecionar Cristos. Mostrou-me sua coleção, na qual se destacavam um Cristo
lavrador do Vale de Jequitinhonha, com o ventre oco, crucificado nas próprias
enxadas; um Cristo peruano com cara indígena, todo retorcido, a cabeça
avançada, como que prestes a se desprender do tronco; e um Cristo guatemalteco,
amarrado no poste de tortura, tendo sobre a cabeça um capuz por baixo da coroa
de espinhos. Emprestou-me os três para que frei Nicolau escolhesse.
Na
volta, parei no Largo do Arouche para comprar flores. Dia seguinte, o altar da
igreja deveria ser enfeitado para a noite do sábado de Aleluia. De repente, uma
mulher em trajes sumários, descabelada, olhos a brilhar de ódio, invadiu uma
das barracas e, com uma jarra nas mãos, começou a derrubar tudo e a xingar o
florista. Foi a única vez que vi uma briga de casal sob chuva de
pétalas...
O
homem, acuado, começou a gritar que ela era louca. Três ou quatro fregueses
acorremos a segurá-la. Ao conseguir, senti algo quente e pastoso correr pelo
meu braço direito. Ela tinha cortado as mãos com a jarra. Acalmada, aceitou que
eu a levasse até o Hospital das Clínicas para que fosse medicada.
―
O que houve com a senhora? – indaguei no caminho.
―
Frei, ele me largou – disse vacilante, exalando forte cheiro de álcool. – É meu
homem, mas agora anda com uma piranha.
Padres
e pastores são como médicos, ainda que não tenham tido a doença devem
prescrever algum remédio aos males da alma. Procurei explicar que ela deveria
buscar outros métodos para reconquistá-lo. A agressão e a ofensa não eram os
mais indicados. Quem sabe ele logo cairia em si e se daria conta da importância
de trocar a aventura pelo verdadeiro amor.
A
mulher contou que trabalhava em um restaurante próximo à Praça da República,
onde lavava copos, pratos e talheres. Viera da Bahia. O florista era de Minas.
Os dois se conheciam há cinco anos. Eles se lavavam no restaurante, comiam o
que sobrava das travessas retornadas das mesas e, à noite, dormiam na barraca,
cercados de rosas, margaridas, cravos, hortênsias e bicos-de-papagaio.
―
Prefiro morrer, padre, a viver sem ele.
Falei
do amor, de Deus, da esperança. Por mais que tentasse fugir do discurso
convencional, eu sabia que, nas águas da emoção, não se pesca com a rede da
razão. Um coração machucado só conhece dois remédios: o amor, que cura e
transfigura; ou o tempo, que cauteriza.
No
pronto-socorro do Hospital das Clínicas, ela foi logo atendida. Na saída, me
pediu que a deixasse junto ao cemitério do Araçá.
―
Algum parente enterrado lá? – perguntei.
―
Não; vou comprar uma flor ali na porta e levar para o meu homem.
O
gesto, que a princípio me pareceu redundante, como oferecer pão ao padeiro,
logo me fez entender que, no amor, a atitude fala muito mais alto do que a
própria oferenda.
De
volta à igreja de São Domingos, frei Nicolau veio correndo ver os Cristos que
eu havia conseguido.
―
Por que demorou tanto? - perguntou ele.
―
Porque eu estava acompanhando uma outra paixão. E ela tem nome: Maria das
Graças.
No
Domingo de Páscoa, retornei ao Largo do Arouche com uma caixa de chocolates.
Das Graças e Antônio, sorridentes, atendiam os fregueses na barraca de
flores.
―
Olá Maria, olá amigo, então vocês ressuscitaram?
Ela
me reconheceu:
―
Frei, acho que é isso mesmo o que aconteceu. A gente ressuscitou. O Antônio
largou da piranha.
―
Agora é pra sempre – disse ele. E acrescentou com um toque de ironia: ― O amor
é eterno enquanto dura.
Corrigi-o:
―
O amor dura enquanto é terno – e frisei a distinção entre o verbo e o adjetivo.
Frei Betto é escritor, autor de “A
arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.
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