Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
A expressão “espírito de porco” na língua portuguesa e muito concretamente no
Brasil significa uma pessoa ranzinza, rabugenta e negativa, que só vê o lado
sombrio das coisas, diz coisas desagradáveis, causando constrangimento com suas
atitudes.
Meu sentimento é que esse “espírito de porco” se apossa de muita gente – sem
querer fazer injustiça aos porcos - quando observo algumas reações a situações
vividas e atitudes visibilizadas do Papa Francisco. Desta vez, concretamente em
sua visita a Milão, capital financeira da Itália, situada ao norte do país. Ali
o pontífice, ao visitar uma zona pobre da cidade, rompeu uma vez mais o
protocolo e utilizou um banheiro público. O gesto espontâneo e tão humano
do Papa chamou a atenção do público presente e foi captado por muitas câmeras e
presenciado pela grande quantidade de pessoas que ali se aglomeravam para
vê-lo.
Nos comentários sobre a notícia, vemos, no entanto, reações totalmente
descabidas. Alguns por considerar que o Papa não saberia ordenar suas
necessidades fisiológicas antes de sair no espaço público e isso rebaixaria sua
figura e sua posição. Imagino que quem fez tal comentário seja puro espírito,
da categoria dos anjos e não dos seres humanos, não tendo por isso necessidades
a satisfazer nem urgências físicas a atender. E por isso brinda os leitores do
periódico com essa pérola.
Ao utilizar o banheiro que se lhe apresentava na ocasião em que seu corpo
pedia, o Papa simplesmente demonstrou ser algo a que algumas pessoas ainda não
se acostumaram: humano. Como todo ser humano vivo, seu dinamismo corporal
funciona. E há ocasiões em que há que respeitar suas exigências. Inclusive
quando se é Papa. Ou chefe de estado. Ou Presidente da República.
O corpo tem suas razões e algumas delas são imperiosas e iniludíveis.
Por não ter vergonha de sua humanidade nem pretender ocultá-la sob um falso
angelismo que o situaria no nível dos seres espirituais e não humanos, o Papa
não hesitou em usar o banheiro público, como qualquer outra pessoa o
faria. Parece que alguns, possuídos pelo que o vulgo chama “espírito de
porco” ficaram chocados com isso.
Ainda em Milão, Francisco teve um encontro com presos na penitenciária de San
Vittore. O Papa é muito atento aos encarcerados e várias vezes tem dito
que a Igreja deve aproximar-se dessas pessoas para transmitir-lhes o perdão e a
misericórdia divinos. Desta vez, porém, o pontífice não se limitou a conversar
e almoçar com os detentos. Também descansou brevemente dentro da presídio
no quarto do capelão. É a primeira vez na história que um Pontífice
descansa e dorme, ainda que por um breve espaço de tempo, dentro de um cárcere.
A aproximação do pastor com as ovelhas feridas e isoladas do convívio com a
sociedade para cumprir pena determinada pela lei se faz ainda mais visível e
evidente. Ali onde estão aqueles que são considerados uma ameaça à
segurança, o Papa não apenas se faz presente, mas dorme e descansa. Em lugar de
fazê-lo em uma casa religiosa, na sede da arquidiocese ou mesmo em um hotel,
escolhe faze-lo no mesmo lugar onde dormem os presos, em solidariedade concreta
com os mesmos. Como se quisesse demonstrar que nada teme estando ali entre
eles.
Não poderiam faltar os comentários desairosos e inoportunos diante de um gesto
profético desta natureza. Questionamentos do gênero: “Por que vai dormir
na cela do capelão e não junto com os detentos?” foram feitos, assim como
outros menos convenientes ainda.
O pontificado de Francisco, entre outros muitos frutos positivos, tem tido este
de oferecer uma outra visão da pessoa do Pontífice e seu ministério.
Despojado de distâncias e afastamentos causados pela solenidade da posição que
ocupa, o Papa argentino tem insistido em estar próximo das pessoas, em afeto e
solidariedade, mostrando-lhes o rosto de uma Igreja formada por seres humanos,
frágeis, finitos e limitados. Mas que a partir dessa fragilidade, é
chamada a ser, antes de tudo, solidária.
Os dois episódios que comentamos e provocaram comentários tão inconvenientes
trazem à tona uma visão dualista e equivocada sobre como é e, sobretudo, como
deve ser o chefe da Igreja. Não é nem deve ser alguém distante, acima das
vicissitudes pelas quais passa a humanidade que deseja servir. Ao
contrário, em tudo com ela solidário, por tudo desejoso de servi-la, assume
plenamente sua condição em seus aspectos mais francamente concretos. Igualmente
e mesmo naquilo que tem de mais frágil e vulnerável.
Em suma, não deseja estar
em nada separado daqueles que carregam o peso desta humanidade. Mesmo dos
que estão mais à margem da mesma e não inspiram segurança, e sim medo. Coerente
e inspirado em seu espírito de solidariedade Francisco continua surpreendendo a
todos. Mesmo aqueles que, possuídos pelo “espírito de porco”, encontram sempre
algo a criticar em seus inusuais e tão humanos gestos.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ. É autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)
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