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segunda-feira, 24 de abril de 2017

A MORTE QUE VEM DO AR


Por Maria Clara Lucchetti Bingemer


A Paixão de Cristo, contemplada nesta Semana Santa que há pouco vivemos, foi povoada com rostos de crianças inocentes, vítimas da violência. Sua inocência agredida povoou minha oração. É difícil não ficar comovido e perplexo quando os atingidos são pequenos que mal começam a vida e já dela são arrancados pelas armas brutais que hoje se empregam. E essas armas não são apenas de fogo, mas também químicas. 

Tocou-me de maneira especial a foto dos dois bebês gêmeos Ahmed e Ayad, de nove meses, mortos pelo gás sarin, substância tóxica e letal que atingiu a Síria no último dia 6 de abril.  O pai, Abdel, que segura os filhos já mortos com um carinho triste e ainda perplexo, perdeu além deles e a esposa, mais vinte membros de sua família. 

Como se deu essa chacina?  A morte veio do ar. O gás tóxico e letal foi jogado de um avião.  Abdel viu as aeronaves cruzando o céu quando saía, de manhã cedo, de casa com a mulher e os filhos.  Minutos depois começou a sentir um gosto terrível na boca e intuiu o que acontecia.  Entregou os filhos à mãe dizendo-lhe que partisse. Enquanto isso, foi procurar seus parentes para ajudá-los e salvá-los.  Não houve tempo. 

No caminho, ia contando os mortos de sua família, um a um, assassinados pela inspiração da morte gasificada que desceu no ar. Ele mesmo começou a passar mal e foi levado ao hospital.  Uma espuma saía da boca de todos e da sua própria. Depois de quatro horas foi ao encontro da mulher e dos filhos.  Já estavam mortos. Tomou os dois bebês no colo e assim, com o rosto devastado de tristeza, foi fotografado e sua imagem reproduzida pela imprensa mundial. 

Como é possível viver ali onde se decretou que a vida não pode mais florescer?  Primeiro, se atira nas pessoas, depois se invadem as casas.  Bombas são atiradas e devastam cidades e populações inteiras. Pessoas se explodem a si e ao que está ao redor, ceifando vidas, a sua e a de muitos.   As pessoas correm, se abrigam, procuram proteção debaixo da terra, em edifícios, etc.  Nem sempre o conseguem.

Mas o que fazer quando a morte vem do ar, do ar que se respira, do sopro da vida insuflado no princípio nas narinas de Adão, o feito do barro.  Quando Deus criou o céu e a terra, criou o ser humano para que em sua finitude feita de perecível barro, igualmente fosse cheio do Espírito divino. Como explicar que esse ar que encheu as narinas, o corpo e todo o ser de Adão, é meio e veículo para substâncias químicas que matam vidas em lugar de animá-las?

 O que fazer quando a morte se infiltra e se confunde com a Ruach que soprava desde o início sobre o caos primevo, tornado cosmo pelo pronunciar da Palavra criadora?  Espírito de vida e não de morte, a Ruach engendra o mundo do nada; o nefesh de Deus transforma a argila perecível da qual somos feitos em corpo animado e destinado à plenitude.

Aquilo a que assistimos e que contemplamos no rosto sofredor de Abdel parece ser um processo cruel de des-criação, de destruição irremissível.  Respirar tornou-se um ato perigoso? Não é mais encher os pulmões de vida?  O ar não é mais a fonte de toda inspiração, de todo sopro que configura, transfigura, deifica, diviniza? Inspirar não pode mais ser compreendido e experienciado como ser habitado pelo Espírito divino, que conduz a criação do artista, a mão do escritor e impulsiona ao seguimento de Jesus, o carpinteiro fazedor de milagres, vivo, morto e ressuscitado?

Diante da dor tamanha daquele pai carregando os corpos inertes dos filhos pequenos, mortos por haverem respirado, não cabem muitas palavras.  Apenas o silêncio da fé e o fio da esperança que nos diz que Deus, o Pai de infinita misericórdia e eterno amor, sofreu também a morte do Filho Unigênito e Bem-Amado.  Na Paixão de Jesus, o Filho sofre a tortura e a morte. Sofre o Pai, atingido mortalmente naquilo que é sua identidade mais profunda: sua paternidade.  O Espírito é amordaçado e emudecido.

Abdel é muçulmano fiel e crê que Allah fará justiça.  Desde o lado de cá da comum fé abraâmica, com o olhar do Cristianismo, sofro a tentação do desespero.  Mas penso e creio que Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos, como não nos dará igualmente com Ele todas as coisas? 

Gostaria de encontrar Abdel e dizer-lhe respeitosamente que seus filhos vivem, pois o verdadeiro Espírito que Deus insuflou em suas narinas não foi conspurcado e envenenado pelo gás letal.  Não posso falar-lhe ao ouvido, por isso o acompanho na oração.  Penso que coisa parecida viveram os discípulos quando viram Crucificado seu Mestre, Amigo e Senhor. Mas Ele se manifestou vivo no terceiro dia e confirmou suas promessas.  

Neste tempo pascal, o desafio é crer que a morte que vem pelo ar não extinguirá o Espírito.  Ainda que a morte de crianças inocentes nos encha de perplexidade e indignação.  O vento santo que soprou no princípio e inaugurou o mundo continuará soprando em Pentecostes e encherá toda a face da terra. Aqueles que matam crianças e pessoas inocentes distribuindo a morte sob forma de gás não terão a última Palavra.  E Abdel poderá fazer a travessia de sua dor e reencontrar sua esposa e seus filhos na alegria que é dom que não termina. 
 
 Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).    


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