Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
A Paixão de Cristo, contemplada nesta Semana Santa que há pouco vivemos,
foi povoada com rostos de crianças inocentes, vítimas da violência. Sua
inocência agredida povoou minha oração. É difícil não ficar comovido e perplexo
quando os atingidos são pequenos que mal começam a vida e já dela são
arrancados pelas armas brutais que hoje se empregam. E essas armas não são
apenas de fogo, mas também químicas.
Tocou-me de maneira especial a foto dos dois bebês gêmeos Ahmed e Ayad,
de nove meses, mortos pelo gás sarin, substância tóxica e letal que atingiu a
Síria no último dia 6 de abril. O pai, Abdel, que segura os filhos já
mortos com um carinho triste e ainda perplexo, perdeu além deles e a esposa,
mais vinte membros de sua família.
Como se deu essa chacina? A morte veio do ar. O gás tóxico e letal
foi jogado de um avião. Abdel viu as aeronaves cruzando o céu quando
saía, de manhã cedo, de casa com a mulher e os filhos. Minutos depois
começou a sentir um gosto terrível na boca e intuiu o que acontecia. Entregou
os filhos à mãe dizendo-lhe que partisse. Enquanto isso, foi procurar seus
parentes para ajudá-los e salvá-los. Não houve tempo.
No caminho, ia contando os mortos de sua família, um a um, assassinados
pela inspiração da morte gasificada que desceu no ar. Ele mesmo começou a
passar mal e foi levado ao hospital. Uma espuma saía da boca de todos e
da sua própria. Depois de quatro horas foi ao encontro da mulher e dos
filhos. Já estavam mortos. Tomou os dois bebês no colo e assim, com o rosto
devastado de tristeza, foi fotografado e sua imagem reproduzida pela imprensa
mundial.
Como é possível viver ali onde se decretou que a vida não pode mais
florescer? Primeiro, se atira nas pessoas, depois se invadem as
casas. Bombas são atiradas e devastam cidades e populações inteiras.
Pessoas se explodem a si e ao que está ao redor, ceifando vidas, a sua e a de
muitos. As pessoas correm, se abrigam, procuram proteção debaixo da
terra, em edifícios, etc. Nem sempre o conseguem.
Mas o que fazer quando a morte vem do ar, do ar que se respira, do sopro
da vida insuflado no princípio nas narinas de Adão, o feito do barro.
Quando Deus criou o céu e a terra, criou o ser humano para que em sua finitude
feita de perecível barro, igualmente fosse cheio do Espírito divino. Como
explicar que esse ar que encheu as narinas, o corpo e todo o ser de Adão, é
meio e veículo para substâncias químicas que matam vidas em lugar de animá-las?
O que fazer quando a morte se infiltra e se confunde com a Ruach que
soprava desde o início sobre o caos primevo, tornado cosmo pelo pronunciar da
Palavra criadora? Espírito de vida e não de morte, a Ruach engendra
o mundo do nada; o nefesh de Deus transforma a argila
perecível da qual somos feitos em corpo animado e destinado à plenitude.
Aquilo a que assistimos e que contemplamos no rosto sofredor de Abdel
parece ser um processo cruel de des-criação, de destruição irremissível.
Respirar tornou-se um ato perigoso? Não é mais encher os pulmões de vida?
O ar não é mais a fonte de toda inspiração, de todo sopro que configura,
transfigura, deifica, diviniza? Inspirar não pode mais ser compreendido e
experienciado como ser habitado pelo Espírito divino, que conduz a criação do
artista, a mão do escritor e impulsiona ao seguimento de Jesus, o carpinteiro
fazedor de milagres, vivo, morto e ressuscitado?
Diante da dor tamanha daquele pai carregando os corpos inertes dos
filhos pequenos, mortos por haverem respirado, não cabem muitas palavras.
Apenas o silêncio da fé e o fio da esperança que nos diz que Deus, o Pai de
infinita misericórdia e eterno amor, sofreu também a morte do Filho Unigênito e
Bem-Amado. Na Paixão de Jesus, o Filho sofre a tortura e a morte. Sofre o
Pai, atingido mortalmente naquilo que é sua identidade mais profunda: sua paternidade.
O Espírito é amordaçado e emudecido.
Abdel é muçulmano fiel e crê que Allah fará justiça. Desde o lado
de cá da comum fé abraâmica, com o olhar do Cristianismo, sofro a tentação do
desespero. Mas penso e creio que Aquele que não poupou seu próprio Filho,
mas o entregou por todos, como não nos dará igualmente com Ele todas as
coisas?
Gostaria de encontrar Abdel e dizer-lhe respeitosamente que seus filhos
vivem, pois o verdadeiro Espírito que Deus insuflou em suas narinas não foi
conspurcado e envenenado pelo gás letal. Não posso falar-lhe ao ouvido,
por isso o acompanho na oração. Penso que coisa parecida viveram os
discípulos quando viram Crucificado seu Mestre, Amigo e Senhor. Mas Ele se
manifestou vivo no terceiro dia e confirmou suas promessas.
Neste tempo pascal, o desafio é crer que a morte que vem pelo ar não
extinguirá o Espírito. Ainda que a morte de crianças inocentes nos encha
de perplexidade e indignação. O vento santo que soprou no princípio e
inaugurou o mundo continuará soprando em Pentecostes e encherá toda a face da
terra. Aqueles que matam crianças e pessoas inocentes distribuindo a morte sob
forma de gás não terão a última Palavra. E Abdel poderá fazer a travessia
de sua dor e reencontrar sua esposa e seus filhos na alegria que é dom que não
termina.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
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