Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Eis-nos novamente prestes a celebrar o mistério maior do cristianismo: a Páscoa
do Senhor. O tríduo pascal começará após a ceia onde o Filho será
entregue por alguém mais próximo de seu grupo de discípulos. Em seguida,
seremos convidados a contemplar sua dor quando é julgado, condenado e depois
torturado, escarnecido, crucificado para, finalmente, morrer no suplício
reservado aos marginais e bandidos, fora das portas da cidade.
Depois disso, porém, viveremos um hiato, um tempo feito de ausência e silêncio
que desembocará então na celebração da Ressurreição daquele que foi crucificado
e morto. Trata-se de uma festa de alegria, de vitória, de vida em
plenitude. A liturgia é permeada de aleluias e cânticos de louvor, aclamando o
Crucificado que venceu a morte e nos deu nova vida.
Mas a alegria da Ressurreição tem um preço e um custo. Trata-se da vitória de
um Crucificado sobre uma morte cruel e violenta, na qual Deus diz ao mundo que
o amor vence a morte. De que amor se trata? Não certamente do que os gregos
entendiam por philia, amizade entre iguais, prazerosa e simétrica.
O amor que levou Jesus à Cruz foi ágape feita de entrega e saída de si, de
serviço desinteressado e generoso aos outros; assumiu a perseguição e a rejeição
no próprio corpo e na própria vida até perder a vida para que outros possam
tê-la.
Os primeiros cristãos, após o deslumbramento da
experiência de verem vivo aquele que haviam contemplado morto, começaram
imediatamente a narrar a Paixão do Crucificado. Com isso pretendiam penetrar um
pouco mais naquele mistério aparentemente incompreensível de como o amor
desemboca na dor mais profunda de que se tem notícia na história da humanidade,
para terminar com uma vitória que não apaga o que foi sofrido e doído, mas o
transfigura em missão e anúncio jubiloso. O seguimento de Jesus de Nazaré,
reconhecido como o Senhor Exaltado, Cristo de Deus, foi sendo sempre mais
entendido como uma experiência de paz e de alegria, mas da qual a dor não está
ausente.
O mistério da Paixão, que tem como final não o
túmulo e o nada, mas a ressurreição, vida nova e pujante, é o que a Igreja
celebra neste tempo litúrgico. Em todos os significados, paixão é compatível
com excesso, superabundância, seja de sentimentos, gosto, desgosto ou sofrimento.
Não entra na zona dos meios termos, dos tons de cinza, a paixão.
Estar apaixonado é necessariamente estar possuído,
repleto, invadido por um excesso de sentimento ou subjugado por um excesso de
dor e sofrimento, ou cego por uma superabundância de rancor. É este excesso que
se oferece à nossa contemplação nesta Semana que se inicia e que o calendário
chama Semana Santa. Infelizmente converteu-se em mais um feriado. E,
geralmente, sobra pouco espaço para se viver, experimentar, celebrar a grande protagonista
desse evento: a paixão.
Pois o Mistério Pascal nada mais é do que mistério
de Paixão. Paixão de Jesus por Deus que é seu Pai e cujo desejo é preciso acima
de tudo realizar. Ainda que doa, que custe, que mate. Paixão de Jesus - o filho
do carpinteiro, o filho de Maria, que ia à Sinagoga e conhecia a Lei - pelo
projeto do Reino de Deus. Projeto que exigia dedicação integral, que implicava
anunciar uma Boa Notícia a tempo e a contratempo por cima dos telhados. Projeto
de inclusão que chamava à mesa para a refeição os excluídos de toda espécie:
doentes, leprosos, fariseus, publicanos, mulheres, crianças, prostitutas,
ladrões.
Se algo se pode dizer de Jesus é que era um
apaixonado. A paixão era o motor de sua vida e sua história, o impulso de sua
atuação, a inspiração de suas palavras. Sob a força da paixão curou doentes e
endemoniados, e ressuscitou mortos. Por ela impulsionado, acolheu os gestos de
amor da prostituta no banquete, do publicano que lhe oferecia hospedagem, do
leproso que se apresentava para ser tocado, da samaritana que lhe dava de beber
e lhe fazia perguntas.
E ainda obedecendo à dupla paixão pelo Pai e pelo
Reino enrijeceu o rosto e começou a caminhar para Jerusalém, seguido por
apavorados e duvidosos discípulos que nada entendiam e cujo coração tardava em
arder. Chegando à cidade onde haviam morrido tantos profetas, chorou. Derramou
lágrimas de apaixonada compaixão que nada tinha de autocomiseração pelo destino
que o aguardava. Mas sim de visceral dor por não haver conseguido reunir em seu
misericordioso regaço os filhos de Sião que tanto amava.
E ali a Paixão de Jesus – pelo Pai, pelo
Reino, por aqueles e aquelas que o Pai lhe dera – vai se converter no grande
ritual, na grande liturgia da agonia e da morte, que terminará no Gólgota, na
hora nona, trazendo as trevas sobre a terra. E ali, aos que o seguiram – e aos
que com medo fugiram – será proposta uma nova chave de leitura para a Paixão. O
convite é abrir o coração e a vida, para que a Paixão de Jesus se transforme em
Paixão por Jesus.
Viver a Semana Santa, portanto, é ouvir o convite
para apaixonar-se. Nada tem de morbidez ou masoquismo tenebroso. Trata-se de um
caminho luminoso esse que se descortina no Mistério Pascal. Luminoso
porque é caminho de vida. Apesar da dor, apesar do sofrimento, apesar da morte
que ninguém queria... é o caminho do amor. Pois sabemos o fundo mais profundo:
se não tivermos algo pelo qual estamos dispostos a morrer... valerá a pena
viver? Terá sentido uma vida que se resume à magra moral, raquíticos prazeres,
insípida segurança, solitárias sensações? A Paixão de Jesus ensina que viver
apaixonado é a única maneira de viver em plenitude.
O teólogo suíço Hans Urs von Balthasar diz que
“...Deus expõe à vista humana seu ser mais profundo no sofrimento; um sofrimento
que, além de tudo, assume livremente uma culpa alheia, enquanto o resto dos
caminhos que conduzem o ser humano a Deus são caminhos de superação da dor, de
busca da “vida bem-aventurada”, do desejo de nunca mais ver-se exposto à
contingencia e à tribulação. “
A alegria pascal que se segue ao sofrimento da Cruz
é real e verdadeira. Mas só acontece se não há uma recusa ou uma negação da dor
e da morte. Sobretudo da dor e da morte que abatem e oprimem os irmãos. Aquele
que segue a Cristo Ressuscitado já não vive para si, mas para Ele. E por Ele é
chamado a consolar os tristes e aflitos, a atender os pobres, os órfãos e as
viúvas, a alimentar os famintos e vestir os nus. Se buscar a alegria eludindo
essas situações negativas que clamam por presença e auxílio, o que encontrará
será o vazio de um gozo efêmero e oco, que logo se esvairá entre seus dedos
como água.
A alegria pascal que celebraremos no domingo deve
recordar-nos que seguimos um apaixonado que foi condenado à morte, crucificado
pelos que odiavam a verdade e eram aferrados a seus privilégios. Nesse
seguimento, alguma proporção de responsabilidade participativa nas dores e
sofrimentos dos irmãos nos está certamente reservada. Assumi-la com confiança é
o que nos cabe. Assim como esperar e acreditar que o Pai pronunciará sobre
nossa vida a palavra definitiva da vida que não morre. Enquanto o Espírito
derramará em nossos corações a alegria imorredoura que jorrou na noite luminosa
em que o Messias venceu a morte e se manifestou vivo e glorioso aos seus.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora
do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A teóloga é autora de “O mistério
e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora
Rocco.
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