Por Marcelo
Barros
Nesses dias da Quaresma, as Igrejas
cristãs antigas nos convidam para uma conversão do nosso ser. Essa conversão
implica uma mudança no modo de viver as relações com os irmãos e irmãs e também
a comunhão com a natureza. No entanto, essa conversão só será profunda se
conseguirmos mergulhar no mais profundo do nosso ser interior. Ali, poderemos
descobrir uma presença divina que nos chama ao amor solidário e a uma profunda
divinização do nosso ser.
Conforme a mitologia grega, Zeus
escondeu a dimensão divina do humano no lugar mais oculto e profundo, onde o
ser humano normalmente não a procura: em seu próprio coração. Por isso, os espirituais e místicos de todas as
religiões propõem a peregrinação
interior e ensinam que essa exige uma profunda renovação da vida.
No Recife dos anos 70, um padre,
acusado de ser pessoa de trato difícil, recebeu um telefonema do arcebispo dom
Hélder Câmara que lhe pedia uma audiência. O padre se revelou disponível a
qualquer momento que o bispo quisesse. Mas, Dom Hélder esclareceu que não havia
pedido a conversa para si. A audiência que o padre deveria dar era a si mesmo. Precisava
marcar um diálogo com o seu eu interior. O padre, ofendido, respondeu: “Procuro fazer bem o meu trabalho, mas,
na minha vida pessoal, ninguém interfere!” .
Esse modo de pensar é pragmático,
mas nada tem de espiritual. O Espírito Divino nos chama não só a fazer coisas
que produzam resultados visíveis, mas principalmente a testemunhar algo mais profundo e inefável. De
fato, é mais fácil conquistar mil mundos do que chegar ao auto-domínio, conviver
com o seu semelhante e, como diziam os antigos espirituais: “habitar consigo
próprio”. Quando, em 1969, pela primeira vez, os astronautas chegaram à lua,
uma senhora do interior do Maranhão falou: “Parece mais fácil o homem ir à lua
do que a gente se dar bem consigo mesma e com as pessoas próximas”.
No
Evangelho, Jesus chega a dizer que, quem não receber o reino divino como uma
criança não pode entrar nele (Cf. Mc 10, 15).
Na Idade Média, Mestre Eckhart, teólogo alemão, ensinava que “cada um de
nós tem uma dimensão mística”. E esclarecia: “Esse ser místico é a dimensão de criança
que existe dentro de cada pessoa”.
Antigas religiões orientais, como os
diversos ramos do hinduísmo e do budismo, ensinam exercícios para que as
pessoas aprimorem esta busca interior. Quase todas as tradições insistem que,
para realizar esta peregrinação interior, é preciso que a pessoa simplifique a
sua vida, busque a sobriedade, ame o silêncio e, principalmente, aprofunde a
sua capacidade de amar. O próprio Jesus, no Evangelho propôs, como condição
para o discipulado, o despojamento pessoal e a disposição de partilhar com o
outro tudo o que se tem e o que se vive. A espiritualidade bíblica insiste que
o cuidado com a interioridade não pode isolar a pessoa em si mesma. Ao
contrário, é para torná-la mais capaz de sair de si e viver a comunhão com os
outros. Dietrich Bonhoeffer, teólogo
luterano, mártir do nazismo, dizia: “Deus está em mim para você e em você, para
mim. Ele está em mim, mas eu o encontro melhor em você e, então, você o revela
presente em mim, assim como eu o mostro presente e atuante em você”.
A fé cristã nos assegura que esse
caminho se realiza pela graça divina e é totalmente gratuito e democrático. É
acessível a todos. Basta querer e aceitar o chamado divino. Vale para nós,
hoje, o que Paulo escreveu aos cristãos de sua época: “Vocês não vivem mais sob
o domínio dos instintos egoístas (carne), mas sob o Espírito e o próprio Espírito
Divino habita em vocês” (Rm 8, 9).
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.
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