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segunda-feira, 10 de abril de 2017

SUBINDO A JERUSALÉM


Por Maria Clara Lucchetti Bingemer 



A Quaresma já vai avançada. Daqui a pouco mais de uma semana terá início a Semana Santa, que culmina com a celebração da Paixão e da Páscoa. Durante este tempo, a Igreja convida os fiéis à penitência e à conversão, enquanto acompanham Jesus de Nazaré em sua subida a Jerusalém, em seu caminho para a Paixão.

Não se trata de uma prática antiquada e sem sentido para os dias de hoje. Trata-se de um tempo especial de purificação, que prepara para viver o grande mistério da morte e ressurreição do Senhor. E neste processo, a ascese é de fundamental importância, embora a palavra esteja em desuso e possa provocar repulsa ou estranhamento.

Vivemos em uma cultura movediça e cambiante, onde os sentidos são acossados diariamente com estímulos constantes, para nos levar ao consumo desenfreado, à tirania do prazer, à avidez do ter e do possuir, aos quais é muito difícil resistir. Há profissionais talentosos regiamente pagos para descobrir nossas fragilidades, estimulá-las e atingi-las.

Esta cultura transtorna nossa interioridade, pois trabalha fundamentalmente em nossos sentidos, provocando sensações às vezes tão intensas, refinadas e contínuas, que podem entrar em nós sem tornar-se percepções conscientes, e muito menos elaboradas com um pensamento próprio. Há, portanto, para cada um de nós, cidadãos da pós-modernidade, um risco constante de viver permanentemente no fluxo contínuo das sensações que chegam aos nossos sentidos e seduzem nossa imaginação.

Essas sensações começam a circular dentro de nós, nos atraem e passam a formar parte de nosso universo interior. São direcionadas a nossas fomes e sedes naturais, e excitam as fomes e sedes artificiais e fictícias provocadas pelo mercado. Sutilmente ou mesmo grosseiramente, vão se apropriando de nossos sentimentos e de nossas decisões. Esta maneira de viver, submetidos a adicções criadas e mantidas artificialmente, começa a impedir-nos de enfrentar a realidade e seus desafios. Vai gerando em nós alienação, e condutas viciadas e compulsivas. 
            
Na contramão dessa cultura do consumo e do bem-estar, a Igreja propõe a ascese. A palavra grega ascese (σκησις) quer dizer exercício. Trata-se de exercitar-se para recuperar o domínio de si e não ser joguete dócil da propaganda e da cultura de sensações. Exercitar o corpo e o espírito, a fim de não se submeter a todas as adicções que a sociedade apresenta incessantemente.       
     
Sob esta luz, portanto, o jejum tem pleno sentido. Assim também os exercícios físicos na justa medida. Abster-se de comida, de álcool, de fumo e também do uso imoderado da internet e da televisão, do jogo, da droga, do alucinógeno, não apenas permite ao corpo e ao espírito estarem mais disponíveis para a oração e o serviço. O corpo em jejum e adestrado, o espírito vigilante e diligente são terra árida para as compulsões do consumo. Fazem-nos mais livres e dispostos para aquilo que é realmente importante, deixando de lado o que aliena e anestesia.

Tem também sentido a oração, caminho de gratuidade que não controlamos nem manipulamos, onde um Outro absoluto conduz e tem as rédeas de uma experiência que não podemos produzir, mas apenas esperar, dispor-nos, acolher agradecidamente. Em uma cultura onde tudo está ao alcance de um "clic" e se consegue em segundos, entrar mais a fundo nos tempos de Deus, que se move em ritmo de eternidade, é um excelente e sadio exercício.     
    
Assim também o despojamento pessoal expresso na esmola dada ao pobre, na ajuda ao necessitado, em todas as obras de misericórdia: visitar os doentes, vestir os nus, alimentar os famintos e dar de beber aos sedentos, fazer-se presente nos cárceres vários de cada dia, cuidar das crianças, atender os idosos. Tudo isso nos tira de nós mesmos e nos volta para os outros, na contramão de uma cultura que nos ensina que há que guardar, acumular, entesourar, investir, multiplicar os próprios bens.

A razão de ser de todo esse exercício ascético nos será revelada em uma vida mais livre, em um coração mais aberto e disponível para acompanhar Jesus que, à frente de seus discípulos, caminha para Jerusalém, tendo diante dos olhos apenas a vontade do Pai e o desejo de realizá-la. Para segui-lo em uma cultura como a nossa é imprescindível exercitar-se. A Quaresma pretende ser uma ocasião propícia para isso. E mesmo já avançada, sempre é tempo de vivê-la.

  Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A teóloga é autora de “O  mistério e o mundo –  Paixão por  Deus em tempo de descrença”, Editora  Rocco.

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