Por Maria Clara Lucchetti
Bingemer
A Quaresma já vai
avançada. Daqui a pouco mais de uma semana terá início a Semana Santa, que
culmina com a celebração da Paixão e da Páscoa. Durante este tempo, a Igreja
convida os fiéis à penitência e à conversão, enquanto acompanham Jesus de
Nazaré em sua subida a Jerusalém, em seu caminho para a Paixão.
Não se trata de uma
prática antiquada e sem sentido para os dias de hoje. Trata-se de um tempo
especial de purificação, que prepara para viver o grande mistério da morte e
ressurreição do Senhor. E neste processo, a ascese é de fundamental
importância, embora a palavra esteja em desuso e possa provocar repulsa ou
estranhamento.
Vivemos em uma cultura
movediça e cambiante, onde os sentidos são acossados diariamente com estímulos
constantes, para nos levar ao consumo desenfreado, à tirania do prazer, à
avidez do ter e do possuir, aos quais é muito difícil resistir. Há
profissionais talentosos regiamente pagos para descobrir nossas fragilidades,
estimulá-las e atingi-las.
Esta cultura transtorna
nossa interioridade, pois trabalha fundamentalmente em nossos sentidos,
provocando sensações às vezes tão intensas, refinadas e contínuas, que podem
entrar em nós sem tornar-se percepções conscientes, e muito menos elaboradas
com um pensamento próprio. Há, portanto, para cada um de nós, cidadãos da
pós-modernidade, um risco constante de viver permanentemente no fluxo contínuo
das sensações que chegam aos nossos sentidos e seduzem nossa imaginação.
Essas sensações começam a
circular dentro de nós, nos atraem e passam a formar parte de nosso universo
interior. São direcionadas a nossas fomes e sedes naturais, e excitam as fomes
e sedes artificiais e fictícias provocadas pelo mercado. Sutilmente ou mesmo
grosseiramente, vão se apropriando de nossos sentimentos e de nossas decisões.
Esta maneira de viver, submetidos a adicções criadas e mantidas
artificialmente, começa a impedir-nos de enfrentar a realidade e seus desafios.
Vai gerando em nós alienação, e condutas viciadas e compulsivas.
Na contramão dessa cultura
do consumo e do bem-estar, a Igreja propõe a ascese. A palavra grega ascese (ἄσκησις) quer
dizer exercício. Trata-se de exercitar-se para recuperar o domínio de si e não
ser joguete dócil da propaganda e da cultura de sensações. Exercitar o corpo e
o espírito, a fim de não se submeter a todas as adicções que a sociedade
apresenta incessantemente.
Sob esta luz, portanto, o
jejum tem pleno sentido. Assim também os exercícios físicos na justa medida.
Abster-se de comida, de álcool, de fumo e também do uso imoderado da internet e
da televisão, do jogo, da droga, do alucinógeno, não apenas permite ao corpo e
ao espírito estarem mais disponíveis para a oração e o serviço. O corpo em
jejum e adestrado, o espírito vigilante e diligente são terra árida para as
compulsões do consumo. Fazem-nos mais livres e dispostos para aquilo que é realmente
importante, deixando de lado o que aliena e anestesia.
Tem também sentido a
oração, caminho de gratuidade que não controlamos nem manipulamos, onde um
Outro absoluto conduz e tem as rédeas de uma experiência que não podemos
produzir, mas apenas esperar, dispor-nos, acolher agradecidamente. Em uma
cultura onde tudo está ao alcance de um "clic" e se consegue em
segundos, entrar mais a fundo nos tempos de Deus, que se move em ritmo de
eternidade, é um excelente e sadio exercício.
Assim também o
despojamento pessoal expresso na esmola dada ao pobre, na ajuda ao necessitado,
em todas as obras de misericórdia: visitar os doentes, vestir os nus, alimentar
os famintos e dar de beber aos sedentos, fazer-se presente nos cárceres vários
de cada dia, cuidar das crianças, atender os idosos. Tudo isso nos tira de nós
mesmos e nos volta para os outros, na contramão de uma cultura que nos ensina
que há que guardar, acumular, entesourar, investir, multiplicar os próprios
bens.
A razão de ser de todo
esse exercício ascético nos será revelada em uma vida mais livre, em um coração
mais aberto e disponível para acompanhar Jesus que, à frente de seus
discípulos, caminha para Jerusalém, tendo diante dos olhos apenas a vontade do
Pai e o desejo de realizá-la. Para segui-lo em uma cultura como a nossa é
imprescindível exercitar-se. A Quaresma pretende ser uma ocasião propícia para
isso. E mesmo já avançada, sempre é tempo de vivê-la.
Maria Clara
Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A
teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus
em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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