Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Vai-se a Las Vegas para jogar, curtir resorts, ou
para namorar e casar-se com rapidez, em clima de excitação. Ou para
matar...e para morrer. Foi isso que o mundo presenciou no último domingo,
quando 58 pessoas foram mortas e mais de 500 ficaram feridas, muitas
gravemente, naquele que já é considerado o maior ataque a tiros da história dos
Estados Unidos.
O Estado Islâmico foi imediatamente cogitado e
assumiu a autoria, parece. Mas até agora as investigações apontam em outra
direção. O atirador – que se matou em seguida, antes da chegada das
forças de segurança – era um aparentemente pacato senhor de 64 anos, que tinha
uma casa perto dali. Ia frequentemente a Las Vegas porque, segundo
informações, gostava de jogar.
Pelo que se descobriu após a tragédia, gostava
também de armas. Foram encontradas dez armas no quarto de hotel onde se
hospedava, ao lado de seu cadáver. Com várias delas, montadas após quebrar as
janelas do quarto, ele atirou do 32º andar do famoso cassino e resort Mandalay
Bay contra uma multidão que se encontrava em um festival de música country, em
frente ao hotel.
O irmão de Stephen Paddock – era esse o nome do
atirador – mostrou-se surpreso e consternado. Segundo ele, o irmão sempre
fora uma pessoa pacífica e reservada. Solitário, não tinha muitos
amigos. Tinha uma namorada australiana, que no momento da chacina
encontrava-se nas Filipinas.
E de novo nos vemos diante do absurdo, da falta de
sentido mais absoluta. Por quê? A violência é algo tão
irracional. Não havia um motivo, uma provocação, nada a que ou a quem
Paddock tivesse que revidar, contra-atacar, nada. Apenas uma multidão de
pessoas, muitos deles jovens, que ouvia pacificamente um show, cantando e
dançando.
De repente, já no final do show, ouviu-se uma
saraivada de tiros disparados por um homem louco que gostava de jogar com
dados, com cartas e... com armas. E resolveu jogar na vida real,
descarregando o vazio de sua vida na multidão inocente.
A tragédia traz de volta a conflitiva questão da
livre venda de armas nos Estados Unidos. Venda e porte livre.
Qualquer cidadão pode entrar em uma loja de armas e comprar quantas
quiser. Segundo as investigações da polícia, Paddock havia comprado três
em sua última visita a um desses estabelecimentos que vendem brinquedos para jogos
vorazes e letais.
Comprou-os e levou-os, além dos outros que já
possuía, dos quais dez foram encontrados junto a seu corpo. Como não
chama sequer a atenção da recepção de um grande hotel o fato de um hóspede
entrar carregado de malas para passar apenas três dias? Como não há
sequer uma revista em sua bagagem ou pelo menos uma vigilância redobrada sobre
sua pessoa?
Com tantos episódios violentos como esta matança em
Las Vegas já acontecidos no país, todo lugar público deveria ter vigilância
mais rigorosa para impedir que pessoas como Stephen Paddock pudessem transitar
livremente com seu arsenal bélico e depois atirar contra centenas de inocentes.
Mas o país está muito ocupado caçando migrantes
teoricamente ilegais que ali têm família e trabalham duramente para se
sustentar. Ou discutindo com o ditador insano da Coreia do Norte, para
ver quem tem mais mísseis e espalha mais medo na humanidade.
Enquanto isso, os jogos vorazes internos
continuam. E inocentes são atingidos e mortos. Surpreendidos em seu
lazer despreocupado por armas que ferem e matam, levadas na volumosa bagagem de
Paddock quando se hospedou no resort.
Falando ao Congresso estadunidense em 2015, o Papa
Francisco alertou para o conteúdo demoníaco da venda de armas que lava dinheiro
com sangue. Exortou os congressistas a encontrarem uma solução definitiva para
acabar com isso. Parece que suas palavras, apesar de aplaudidas de pé com
entusiasmo, não encontraram nenhum eco na concretude da realidade.
As armas continuam circulando, manipuladas por
qualquer pessoa, até mesmo jovens e crianças. E as tragédias continuam
acontecendo em vários pontos do país: escolas, universidades, shows musicais e
outros lugares destinados à vida e à alegria. E a qualquer momento
o tédio, a falta de sentido para a vida, o vazio existencial explodem na forma
de tiros, ceifando vidas cegamente.
Hoje, Vegas chora seus mortos, como antes o fizeram
Columbine; Blacks Burg, Virginia; Newton, Connecticut; Orlando, Flórida.
E outros e outros. Todo lugar é lugar: cinema, escola, universidade,
discoteca, ceia de natal etc. etc. Em todos esses espaços, vidas foram
interrompidas, perdas foram choradas, sangue foi derramado.
Às vezes os criminosos deixam explicações, outras
não. Paddock não deixou. Pelo menos até agora nada foi
encontrado. O silêncio onde ele jaz pesará para sempre sobre a Las Vegas
feita de luzes artificiais, resorts e cassinos. As armas do assassino,
recolhidas, serão provavelmente usadas por outros, que por sua vez poderão em
um dia de depressão ou fúria usá-las contra inocentes. A roda da
violência vai girar novamente. Até que um governo responsável tome
medidas sérias para cortar sua espiral, vetando o livre porte de armas.
Violência só gera violência. Levar a
violência no bolso, ou na mala, ou nas mãos, não pode dar bom resultado. Porque
somos seres imperfeitos e a sociedade onde vivemos nos desequilibra e nos faz
perder a razão. É muito perigoso dispormos de instrumentos letais para
descarregar nossos demônios interiores sobre nossos semelhantes. A lei tem o
dever de pelo menos coibir nossos atos insensatos, já que não tem o poder de
curar nossas feridas interiores. Sobre essas, só o encontro, o diálogo e
o amor têm poder. Pelo visto, não chegaram a tempo de sanar o coração em
carne viva de Stephen Paddock.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do
Departamento de Teologia da PUC-Rio. A
teóloga é autora de “Teologia latino-americana – Raízes e ramos” (Editoras
Vozes e PUC-Rio), livro que acaba de ser lançado.
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