por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Aprende-se desde que se abre os olhos para a vida que a
única certeza para os seres humanos é a morte. No fundo, isso é o que nos
diferencia de todos os outros seres da criação. Todos morrem. Os seres
vivos nascem, crescem e morrem. O ser humano, porém, entre todos, é o
único que sabe que vai morrer. E por isso passa seu tempo e seus dias em
busca de um sentido para esta vida que desejaria interminável e para sempre,
mas que vai acabar, mais cedo ou mais tarde.
Por isso, a ciência pesquisa e se debruça incansavelmente sobre os vírus,
germes e desordens corporais, buscando meios de cura de todas as doenças: as
antigas e as novas. É grande o avanço feito, não só para a cura de enfermidades
antes consideradas fatais, como também na prevenção de doenças. Os
aparelhos de última geração realizam exames profundos e acurados, que detectam
doenças ainda no estágio bem inicial, aumentando as probabilidades de
tratamento e cura.
Infelizmente esses avanços da medicina não chegam a muitos, senão a todos os
hospitais públicos brasileiros. Ou porque não dispõem de modernos e precisos
aparelhos, ou porque os mesmos estão enguiçados.
Isso transforma a vida dos doentes e suas famílias em um calvário de incertezas
e sofrimento por não conseguirem sequer um diagnóstico e não saberem o
tratamento a ser seguido. A morte muitas vezes chega antes do que a técnica e a
torna inútil.
Assim aconteceu com pessoas de minha relação em um hospital público da região
serrana fluminense. Omito os nomes por respeito a eles e a sua dor tão recente.
O doente era um homem de cinquenta e alguns anos, forte e
aparentemente sempre saudável. Trabalhava em oficina onde lidava muito
com tinta, e o fazia sem a proteção de uma máscara.
Provavelmente a inspiração da tinta danificou seu pulmão. Um dia
sentiu-se muito mal e teve que ser internado. Mas os sintomas que o fizeram
chegar à internação poderiam igualmente ser cardíacos. O fato é que não
se conseguia chegar ao diagnóstico e, portanto, ao tratamento. Os dois
aparelhos de ressonância magnética do hospital não funcionavam. Havia
requerimentos empilhados na mesa da prefeitura sem que o conserto fosse
providenciado. O estado do doente piorava dia a dia, até que os médicos o
sedaram e o entubaram, enquanto aguardavam o momento de poderem fazer o
exame.
Ainda assim o estado dele piorou e decidiu-se que
deveria ser transferido urgentemente para outro hospital da cidade.
Porém, já muito fragilizado não poderia ir em ambulância comum, era necessário
uma UTI móvel. Duas vieram, duas voltaram; os monitores de ambas estavam
enguiçados. Sem recursos para buscar um atendimento particular, a família, os
amigos e a comunidade eclesial faziam corrente de oração e perdiam horas nas
filas de atendimento dos órgãos públicos.
Enquanto se buscava uma terceira ambulância que funcionasse, o paciente
morreu. Sua esposa e filhos, extremamente abalados pela brutalidade e
celeridade do processo, atordoados, se perguntavam sobre o que afinal tinha
causado a morte dele. Não se sabia. Com os aparelhos quebrados, os
médicos não conseguiram precisar um diagnóstico. Havia apenas suspeitas.
Suspeita de tumor, de cardiopatia, de pneumonia. E de suspeita em
suspeita, sem que nada pudesse ser comprovado, a morte se antecipou e invalidou
todos os esforços e expectativas.
A impotência diante da morte que poderia talvez ter sido evitada se houvesse o
acesso ao tratamento adequado nos faz voltar às perplexidades que instigaram o
teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, nos anos 1970. Como pode os pobres não
gozarem dos direitos mais elementares, entre eles o direito à vida? Como pode
uma parcela significativa da humanidade ser ignorada como se não contasse, não
fosse um sujeito e um cidadão?
Infelizmente, isso é o que ocorre em várias partes do mundo, inclusive em nosso
país. Tantos decênios e mesmo séculos após a revolução industrial, em plena
pós-modernidade, o pobre continua a ser o insignificante, a não pessoa, aquele
que não tem direito a ter direitos. E as instâncias que têm por missão
atendê-lo, servi-lo, garantir sua vida, sua saúde, seu bem-estar encontram-se
em total estado de carência e vulnerabilidade. Sem aparelhos, sem ambulâncias
adequadas, sem instrumental cirúrgico, para que serve um hospital? Para
ser um campo de concentração de agonizantes, que gemem e sofrem sem esperança
de melhora?
A pobreza é algo contra a vida, é morte prematura e injusta, morte física e
cultural, afirmou Gustavo Gutierrez, pai da Teologia da Libertação. A
suas palavras acrescenta o Pe. Peter Hans Kolvenbach, filólogo holandês, ex
superior geral dos jesuítas: “A pobreza no mundo é um fracasso da
criação”. Este fracasso não é espontâneo, mas fabricado. Gerado pela
injustiça, carcome a criação por dentro, atrasando a vida em plenitude que Deus
deseja para todos e retardando o momento quando Deus será tudo em todos e não
haverá mais pranto nem tristeza. A saúde pública no Brasil infelizmente é um
exemplo sombrio desse atraso.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora
do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha
da paixão e da compaixão" (Edusc)
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