Por Ivone Gebara
O cristianismo nos educou
que há que “amar a Deus sobre todas as coisas”. Este é o primeiro mandamento da
“lei de Deus”, mandamento que entrou de cheio em nossa cultura e se mostra nas
muitas afirmações populares como: ‘primeiro Deus’, ‘abaixo de Deus’, ‘se Deus
quiser’, ‘com a permissão de Deus’, ‘que Deus te abençoe’, ‘graças a Deus’ e
muitas outras no gênero. Não podemos apreender exatamente todas as nuances
dessa palavra no uso ordinário e coloquial que fazemos dela. O mais comum é que
ela indique que estamos vivendo sob o impulso ou o poder de “algo maior” do
qual nossa vida depende. Entretanto, essa palavra embora seja aparentemente
‘maior’ do que nossa vida e as nossas circunstâncias históricas parece
condicionada a decisões individuais e a políticas das mais diferentes
procedências. Por isso, no atribulado contexto político e social em
que vivemos hoje a palavra DEUS está em quase todas as bocas e
em cada boca com um significado e um interesse diferente.
Afirmo algo bastante
conhecido e que pode ser observado no cotidiano das pessoas assim como nos
meios de comunicação os mais variados. Estes manifestam o quanto, muitos
políticos usam a ‘palavra mágica Deus’ para legitimarem sua voz, seu voto e
suas iniciativas. Nesse mesmo contexto, entretanto, muitos têm também tomado a
defesa de Deus afirmando que sua Majestade foi desrespeitada por políticos
exploradores do povo e manipuladores da religião. Defendem a Deus como a si
mesmos... Dizem que os manipuladores usam DEUS a seu favor e não temem tomar
seu nome em vão para justificar suas decisões despejando sobre o povo uma
verborreia pretensamente moral e legitimada por seu DEUS. Este então lhes daria
a autoridade e legitimidade que não têm.
O que gostaria de sublinhar
nessa breve reflexão é que o uso da palavra Deus é impróprio num e noutro caso,
sobretudo no contexto em que vivemos. Acusação e defesa de certa forma usam a
mesma lógica de possessão da autoridade de DEUS para falar em seu nome como se
o conceito Deus fosse claro e seu significado unívoco. Basta observarmos como
alguns prepararam discursos sobre DEUS para dizer o quanto ele
estaria sendo ofendido com o mau uso que fizeram e fazem dele. Afinal usar DEUS
para apoiar golpes, mentiras políticas e a exploração de muitos tipos
dizem ser inaceitável! Com esse discurso querem fazer crer que DEUS estaria do
lado deles, apoiando suas posições e escolhas, o que equivaleria a dizer que
Deus como eles é mais de esquerda do que de direita. Por isso fazem cartas de
desagravo, de defesa de DEUS revelando a partir delas sua postura política
considerada a mais correta, a mais conforme ao bem comum ou o bem do povo. Não
discuto aqui a qualidade das propostas ou dos planos de governo propostos.
Discuto o funcionamento do pensamento, sua articulação lógica nos argumentos
apresentados.
Nessa perspectiva, alguns
até exigem uma posição clara das autoridades religiosas como se essas fossem
obrigadas a tomar de forma manifesta partido de DEUS, segundo os ditames da
esquerda ou da direita política nas muitas variações de cada uma dessas
tendências. De fato essa expectativa poderia talvez favorecer um ou outro lado
da política, mas seria uma vez mais buscar legitimidade nas posturas religiosas
para o enfrentamento político, sobretudo que em algumas questões esses
defensores de Deus afirmam a laicidade do Estado. Como falar com propriedade de
Estado laico? Quando Deus aparece com uma multiplicidade de máscaras, sobretudo
como alter-ego, cobertor, corruptor, corrompido ou justo, libertador e
libertário a laicidade do Estado precisa ser mais bem refletida! Que Deus é
esse? Quem é Deus? Onde está Deus? E mais, qual é o modelo de Estado que Deus
aprovaria?
Creio que nesse panorama
político e teológico confuso e complexo uma pergunta não quer calar em nós: por
que o uso da palavra DEUS está hoje tão freqüente, sobretudo, na
política? Por que essa palavra é recuperada pelos grupos políticos de direita,
de centro e de esquerda, cada um invocando-o para sua causa e seu lado. Nessa
invocação quase sempre consideram a invocação do outro uma mentira ou uma
injúria à Altíssima e Puríssima Santidade de seu Deus?
Em nome de Deus gritam alguns:
Que viva a Pátria com e para Deus! E outros exclamam: Salvem Deus das garras da
direita! Nós somos do lado do Deus dos pobres e vocês do Deus dos
latifundiários! Não, respondem os primeiros... Seu Deus é o Demo... E a
confusão na política, na religião e na sociedade se faz presente cada um
reclamando para si “um pedaço” de Deus! Assim os diferentes grupos expressam a
batalha por DEUS nos campos minados da política nacional e internacional.
Esse uso excessivo da palavra Deus não estaria escondendo uma
fraqueza das autoridades e uma fraqueza dos diferentes grupos frente às suas
crenças políticas? É como se buscassem ‘alguém’ cuja autoridade fosse
indiscutível e também fosse imediatamente desconhecida, uma autoridade mais ou
menos imaginária que servisse de suporte a um sem numero de afirmações que não
resistem a um olhar atento sobre os fatos e as pessoas. Que saídas encontrar
nesse labirinto escuro?
E se não usássemos a
palavra DEUS? Se a deixássemos descansar para recuperar sua força e vitalidade?
Se apagássemos ou colocássemos entre parêntesis, ao menos provisoriamente essa
palavra dos dicionários e da linguagem cotidiana, sobretudo da política
partidária? E, se não achássemos mais que as igrejas e suas autoridades
públicas tivessem o privilégio maior e a verdade mais profunda em relação ao
“conhecimento de Deus”? E se tentássemos entender o que uns e outros querem
dizer quando empregam essa escorregadia palavra? Sim escorregadia palavra
porque portadora de escorregadios significados. Escorregadia visto que parece
ter um só significado, mas é multidão. Multidão de significados para
os que a utilizam e para os que calam sobre ela. Escorregadia porque nos conduz
a um terreno movediço que nos faz cair em contradições contínuas frente a
frágil realidade que somos e que vivemos.
E, mais uma vez, se
parássemos de usar a palavra DEUS e tentássemos explicitar no lugar dela o que
estamos pedindo, o que estamos esperando de nós mesmos, o que estamos desejando
para o mundo que nos rodeia. Permitamos a Deus o descanso do sétimo dia...
Deixemo-lo descansar dos conflitos em que não só buscamos sua ajuda, mas o
usamos como cúmplice imaginário para nossos nefastos ou gloriosos planos.
Deixemos que descanse e tentemos reconfigurar nosso mundo nesse acender e
apagar de vidas, nessa sucessão de momentos diversos de nossa história.
Assumamos o compromisso com nossa própria palavra e nossa responsabilidade para
hoje.
Nessa linha, tentar dizer
coisas realizáveis para sair dos verbos, substantivos e adjetivos abstratos
como, por exemplo, “é preciso amar”, “fazer justiça”, “ser irmão”... Todo esse
linguajar genérico não opera nenhuma mudança efetiva. Está minado de joio, de
cizânia, de interesses egoístas, de enganos, manipulações... Cria ilusões e
desejos impossíveis. Cria falsas expectativas e nos enreda cada vez mais em nós
mesmos e em nossas dissimulações...
Quando todo o corpo dói
machucado por uma queda violenta é preciso prestar atenção para ver por onde
segurá-lo para melhor erguê-lo sem danificá-lo ainda mais. E no levantar, todos
podem ajudar de diferentes maneiras se de fato estiverem interessados em
levantar o corpo caído, em saná-lo e não apenas se mostrar uns aos outros
quando e como o estão levantado. Da mesma forma se quiserem ajudar poderão
fazê-lo a condição de não ficarem todo o tempo acusando uns e outros de terem
empurrado o corpo ao chão ou de lhe terem negado sustento. Enfrentar-se ao
corpo ferido é buscar as saídas imediatas para mantê-lo vivo e depois pouco a
pouco curar as partes mais atingidas dele, aquelas sem as quais o corpo não se
sustentaria. Mas, é claro que a analogia de um corpo quebrado, ferido e jogado
no chão não é a mais adequada para falarmos do complexo corpo social muito
embora possa ajudar-nos a partir dela e ir mais além dela. Diante da desumanidade
crescente em nosso meio o uso da palavra DEUS tornada cúmplice dessa
desumanidade, nos convida uma vez mais a silenciá-la e a falar em nosso nome e
a denunciar os abusos de poder que nos rodeiam em nosso nome. Falar em nosso
nome é também denunciar as tramas e as corrupções cotidianas de
outros nomes contemporâneos correndo até o risco da perseguição.
Há algo muito forte que
tem a ver com a política de nossas emoções, com nossos afetos cotidianos que se
misturam às muitas decisões também políticas que tomamos. Não se pode obrigar
alguém a amar o que rejeitou e, não se pode fazer de conta que se ama quando de
fato não se ama. Fazer figura de defensores dos pobres, seguidores do Evangelho
para que sejam reconhecidos como bons e justos não cria novas relações. Da
mesma forma, amar por constrangimento político ou religioso, amar porque os
“amigos” me obrigam a fazê-lo não se sustenta. Entra-se no jogo das máscaras
teatrais e pode-se cair em qualquer tropeço... E o dano social pode ser ainda
maior. Quem de fato tem ouvidos para ouvir ouve. Quem tem olhos para ver, vê.
Quem acolhe alertas, muda. Quem tem dúvidas pode se informar e se abrir aos
desafios da história presente.
As pressões feitas para se
amar para além das decisões interiores, para além do amor que nasce das
entranhas não sustenta nenhuma política em favor do bem comum. Nesse
sentido é trabalho quase inútil tornar Deus um político de uma cor determinada
ou uma tendência social por pressão... Nada se sustenta sem a integridade dos
corações, sem as convicções que nutrem a história de uma vida. Por isso de nada
adianta pressionar bispos para que reajam diante do momento nacional ou para
que sejam capazes de ouvir os gritos das mulheres em busca de dignidade e
respeito. A velha tradição cristã falava de ‘conversão do coração’ e esta
parece estar ainda distante para muitos. Nesse particular, os políticos estão
agora preocupados com a pressão social contra o estupro de mulheres. Estão
transformando o estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de
Janeiro em questão de honra política. Movem-se exigindo justiça, fazendo leis
que castigam duramente os estupradores. Horrorizados invocam seu Deus diante do
acontecido embora saibamos bem que o estupro é também ‘pecado conhecido’ na
vida de civis, militares e religiosos de longa data. Mostram-se espantados como
se esse horror não fosse também obra de seus corpos e de suas mentes
condescendentes com a identidade machista naturalizada que herdaram.
Perdoam-se mutuamente e de aparência contrita lamentam os erros dos seus pares
prometendo agir contra esse ‘desvio social e comportamental’.
Os estupros coletivos
de mulheres não são apenas de nosso tempo. Quantas guerras foram feitas às
mulheres nas muitas batalhas do mundo! Hoje estarrecidas/os imaginávamos que
tal prática comum em muitas situações já não existia no meio de nós. Voltamos à
barbárie, à conquista da ‘ frágil inimiga’ pelo prazer de vê-la ensanguentada,
derrubada ao solo pela força bruta exaltada. Tomadas/os de indignação temos que
reconhecer a complexidade do que presenciamos. Que prazer coletivo se sente
depois de ter destroçado uma vida? Que gargalhadas e risos sarcásticos povoam
as faces de jovens homens depois desse feito ignominioso? Seria o mesmo que
matar um touro numa tourada, ou ver muitos galos feridos numa rinha organizada
como espetáculo e competição? E depois do touro morto ou do galo ferido se vai
agradecer a Deus ou à Virgem que guiou nossa espada e louvar o apoio de nossa
torcida vencedora. E como a loucura coletiva do estupro e da matança dos galos
ou touros as gargalhadas insanas dos que gozaram excitados pelo sangue e pelos
corpos feridos ecoam como ovações por um troféu conquistado. Sem dúvida alguns
agradeceram a DEUS pela deliciosa brincadeira e pela vitória... Afinal apenas
feriram uma mulher, ser inferior, sujo de sangue... Nada mais do que isso... Uma
mulher! Feriu-se também uma ave ou um animal de porte como um touro... Todos
esses seres na realidade devem se colocar a nosso serviço e lazer! Uma rodada
de cerveja é bem-vinda nesse momento de supremo deleite!
Mais uma vez não
precisamos da palavra DEUS para denunciar esse horror e não precisamos que
aqueles que se afirmam publicamente como representantes de Deus o façam
publicamente. Na realidade eles apenas representam a si mesmos... Não exigimos
que o façam porque não o fazem de coração contrito. E se não é assim não
observarão os acordos, não viverão o que mostram acreditar. De nada servirão as
penalidades maiores ou menores se o coração não for educado para o respeito do
próximo, do meu outro eu. Nós, convictas/os dos valores que defendemos, queremos
fazer valer o direito e a justiça entre nós... Como? Talvez começando tudo de
novo na continuação daquilo que é... Nós nos recolheremos para estudar e nos
treinar em uma ‘arca’ semelhante aquela de Noé... Abriremos nosso coração uns
para os outros... Nós nos despiremos das roupas guardadas cheirando mofo...
Descobriremos que já não se ajustam aos nossos corpos prenhes de novidade...
Enterraremos as armas e os canhões assim como os excessos de ouro e prata...
Faremos poemas olhando o mar e o céu estrelado... Então poderemos sair da arca
e ir as praças cantar e fazer muita música... Já fizemos isso antes.
Lembram-se? E a música e a dança serão tantas que contagiarão outros corpos que
virão dançar também...
Vivemos em coletividade
habitadas/os por nossas crenças e valores como frutos de um mesmo universo
criador, ou melhor, de um ‘pluriverso’ multifacetário. Existimos diversos, uns
aos olhos dos outros mesmo se o mais forte em nós for nossa individualidade.
Mas, cremos que somos um a outra e a outra o outro, interdependentes... Caímos,
erramos... E, renascemos uma no outro... Mesmo velhos ainda dá para nascer de
novo e ir à praça pública... Mas, melhor seria sem usar a palavra Deus embora
intuamos a nossa humanidade divina... Podemos entrar na música que de muitos
lados nos convida a uma ciranda comum cantando “gracias a la vida” e
acreditando na possibilidade de recomeçar, de fazer nascer músculos e
carnes nos nossos ossos ressequidos como dizia o profeta Ezequiel...
Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.
É uma das principais defensoras da Teologia Feminista, irmã da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora. Aos 73 anos, tem mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática
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