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quarta-feira, 18 de outubro de 2017

DEUS UMA PALAVRA ESCORREGADIA


Por Ivone Gebara

O cristianismo nos educou que há que “amar a Deus sobre todas as coisas”. Este é o primeiro mandamento da “lei de Deus”, mandamento que entrou de cheio em nossa cultura e se mostra nas muitas afirmações populares como: ‘primeiro Deus’, ‘abaixo de Deus’, ‘se Deus quiser’, ‘com a permissão de Deus’, ‘que Deus te abençoe’, ‘graças a Deus’ e muitas outras no gênero. Não podemos apreender exatamente todas as nuances dessa palavra no uso ordinário e coloquial que fazemos dela. O mais comum é que ela indique que estamos vivendo sob o impulso ou o poder de “algo maior” do qual nossa vida depende. Entretanto, essa palavra embora seja aparentemente ‘maior’ do que nossa vida e as nossas circunstâncias históricas parece condicionada a decisões individuais e a políticas das mais diferentes procedências. Por isso, no atribulado contexto político e social em que vivemos hoje a palavra DEUS está em quase todas as bocas e em cada boca com um significado e um interesse diferente. 

Afirmo algo bastante conhecido e que pode ser observado no cotidiano das pessoas assim como nos meios de comunicação os mais variados. Estes manifestam o quanto, muitos políticos usam a ‘palavra mágica Deus’ para legitimarem sua voz, seu voto e suas iniciativas. Nesse mesmo contexto, entretanto, muitos têm também tomado a defesa de Deus afirmando que sua Majestade foi desrespeitada por políticos exploradores do povo e manipuladores da religião. Defendem a Deus como a si mesmos... Dizem que os manipuladores usam DEUS a seu favor e não temem tomar seu nome em vão para justificar suas decisões despejando sobre o povo uma verborreia pretensamente moral e legitimada por seu DEUS. Este então lhes daria a autoridade e legitimidade que não têm.

O que gostaria de sublinhar nessa breve reflexão é que o uso da palavra Deus é impróprio num e noutro caso, sobretudo no contexto em que vivemos. Acusação e defesa de certa forma usam a mesma lógica de possessão da autoridade de DEUS para falar em seu nome como se o conceito Deus fosse claro e seu significado unívoco. Basta observarmos como alguns prepararam discursos sobre DEUS para dizer o quanto ele estaria sendo ofendido com o mau uso que fizeram e fazem dele. Afinal usar DEUS para apoiar golpes, mentiras políticas e a exploração de muitos tipos dizem ser inaceitável! Com esse discurso querem fazer crer que DEUS estaria do lado deles, apoiando suas posições e escolhas, o que equivaleria a dizer que Deus como eles é mais de esquerda do que de direita. Por isso fazem cartas de desagravo, de defesa de DEUS revelando a partir delas sua postura política considerada a mais correta, a mais conforme ao bem comum ou o bem do povo. Não discuto aqui a qualidade das propostas ou dos planos de governo propostos. Discuto o funcionamento do pensamento, sua articulação lógica nos argumentos apresentados.

Nessa perspectiva, alguns até exigem uma posição clara das autoridades religiosas como se essas fossem obrigadas a tomar de forma manifesta partido de DEUS, segundo os ditames da esquerda ou da direita política nas muitas variações de cada uma dessas tendências. De fato essa expectativa poderia talvez favorecer um ou outro lado da política, mas seria uma vez mais buscar legitimidade nas posturas religiosas para o enfrentamento político, sobretudo que em algumas questões esses defensores de Deus afirmam a laicidade do Estado. Como falar com propriedade de Estado laico? Quando Deus aparece com uma multiplicidade de máscaras, sobretudo como alter-ego, cobertor, corruptor, corrompido ou justo, libertador e libertário a laicidade do Estado precisa ser mais bem refletida! Que Deus é esse? Quem é Deus? Onde está Deus? E mais, qual é o modelo de Estado que Deus aprovaria?

Creio que nesse panorama político e teológico confuso e complexo uma pergunta não quer calar em nós: por que o uso da palavra DEUS está hoje tão freqüente, sobretudo, na política? Por que essa palavra é recuperada pelos grupos políticos de direita, de centro e de esquerda, cada um invocando-o para sua causa e seu lado. Nessa invocação quase sempre consideram a invocação do outro uma mentira ou uma injúria à Altíssima e Puríssima Santidade de seu Deus?

Em nome de Deus gritam alguns: Que viva a Pátria com e para Deus! E outros exclamam: Salvem Deus das garras da direita! Nós somos do lado do Deus dos pobres e vocês do Deus dos latifundiários! Não, respondem os primeiros... Seu Deus é o Demo... E a confusão na política, na religião e na sociedade se faz presente cada um reclamando para si “um pedaço” de Deus! Assim os diferentes grupos expressam a batalha por DEUS nos campos minados da política nacional e internacional. Esse uso excessivo da palavra Deus não estaria escondendo uma fraqueza das autoridades e uma fraqueza dos diferentes grupos frente às suas crenças políticas? É como se buscassem ‘alguém’ cuja autoridade fosse indiscutível e também fosse imediatamente desconhecida, uma autoridade mais ou menos imaginária que servisse de suporte a um sem numero de afirmações que não resistem a um olhar atento sobre os fatos e as pessoas. Que saídas encontrar nesse labirinto escuro?

E se não usássemos a palavra DEUS? Se a deixássemos descansar para recuperar sua força e vitalidade? Se apagássemos ou colocássemos entre parêntesis, ao menos provisoriamente essa palavra dos dicionários e da linguagem cotidiana, sobretudo da política partidária? E, se não achássemos mais que as igrejas e suas autoridades públicas tivessem o privilégio maior e a verdade mais profunda em relação ao “conhecimento de Deus”? E se tentássemos entender o que uns e outros querem dizer quando empregam essa escorregadia palavra? Sim escorregadia palavra porque portadora de escorregadios significados. Escorregadia visto que parece ter um só significado, mas é multidão. Multidão de significados para os que a utilizam e para os que calam sobre ela. Escorregadia porque nos conduz a um terreno movediço que nos faz cair em contradições contínuas frente a frágil realidade que somos e que vivemos.
E, mais uma vez, se parássemos de usar a palavra DEUS e tentássemos explicitar no lugar dela o que estamos pedindo, o que estamos esperando de nós mesmos, o que estamos desejando para o mundo que nos rodeia. Permitamos a Deus o descanso do sétimo dia... Deixemo-lo descansar dos conflitos em que não só buscamos sua ajuda, mas o usamos como cúmplice imaginário para nossos nefastos ou gloriosos planos. Deixemos que descanse e tentemos reconfigurar nosso mundo nesse acender e apagar de vidas, nessa sucessão de momentos diversos de nossa história. Assumamos o compromisso com nossa própria palavra e nossa responsabilidade para hoje.

Nessa linha, tentar dizer coisas realizáveis para sair dos verbos, substantivos e adjetivos abstratos como, por exemplo, “é preciso amar”, “fazer justiça”, “ser irmão”... Todo esse linguajar genérico não opera nenhuma mudança efetiva. Está minado de joio, de cizânia, de interesses egoístas, de enganos, manipulações... Cria ilusões e desejos impossíveis. Cria falsas expectativas e nos enreda cada vez mais em nós mesmos e em nossas dissimulações...

Quando todo o corpo dói machucado por uma queda violenta é preciso prestar atenção para ver por onde segurá-lo para melhor erguê-lo sem danificá-lo ainda mais. E no levantar, todos podem ajudar de diferentes maneiras se de fato estiverem interessados em levantar o corpo caído, em saná-lo e não apenas se mostrar uns aos outros quando e como o estão levantado. Da mesma forma se quiserem ajudar poderão fazê-lo a condição de não ficarem todo o tempo acusando uns e outros de terem empurrado o corpo ao chão ou de lhe terem negado sustento. Enfrentar-se ao corpo ferido é buscar as saídas imediatas para mantê-lo vivo e depois pouco a pouco curar as partes mais atingidas dele, aquelas sem as quais o corpo não se sustentaria. Mas, é claro que a analogia de um corpo quebrado, ferido e jogado no chão não é a mais adequada para falarmos do complexo corpo social muito embora possa ajudar-nos a partir dela e ir mais além dela. Diante da desumanidade crescente em nosso meio o uso da palavra DEUS tornada cúmplice dessa desumanidade, nos convida uma vez mais a silenciá-la e a falar em nosso nome e a denunciar os abusos de poder que nos rodeiam em nosso nome. Falar em nosso nome é também denunciar as tramas e as corrupções cotidianas de outros nomes contemporâneos correndo até o risco da perseguição.

Há algo muito forte que tem a ver com a política de nossas emoções, com nossos afetos cotidianos que se misturam às muitas decisões também políticas que tomamos. Não se pode obrigar alguém a amar o que rejeitou e, não se pode fazer de conta que se ama quando de fato não se ama. Fazer figura de defensores dos pobres, seguidores do Evangelho para que sejam reconhecidos como bons e justos não cria novas relações. Da mesma forma, amar por constrangimento político ou religioso, amar porque os “amigos” me obrigam a fazê-lo não se sustenta. Entra-se no jogo das máscaras teatrais e pode-se cair em qualquer tropeço... E o dano social pode ser ainda maior. Quem de fato tem ouvidos para ouvir ouve. Quem tem olhos para ver, vê. Quem acolhe alertas, muda. Quem tem dúvidas pode se informar e se abrir aos desafios da história presente.

As pressões feitas para se amar para além das decisões interiores, para além do amor que nasce das entranhas não sustenta nenhuma política em favor do bem comum. Nesse sentido é trabalho quase inútil tornar Deus um político de uma cor determinada ou uma tendência social por pressão... Nada se sustenta sem a integridade dos corações, sem as convicções que nutrem a história de uma vida. Por isso de nada adianta pressionar bispos para que reajam diante do momento nacional ou para que sejam capazes de ouvir os gritos das mulheres em busca de dignidade e respeito. A velha tradição cristã falava de ‘conversão do coração’ e esta parece estar ainda distante para muitos. Nesse particular, os políticos estão agora preocupados com a pressão social contra o estupro de mulheres. Estão transformando o estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro em questão de honra política. Movem-se exigindo justiça, fazendo leis que castigam duramente os estupradores. Horrorizados invocam seu Deus diante do acontecido embora saibamos bem que o estupro é também ‘pecado conhecido’ na vida de civis, militares e religiosos de longa data. Mostram-se espantados como se esse horror não fosse também obra de seus corpos e de suas mentes condescendentes com a identidade machista naturalizada que herdaram. Perdoam-se mutuamente e de aparência contrita lamentam os erros dos seus pares prometendo agir contra esse ‘desvio social e comportamental’.

Os estupros coletivos de mulheres não são apenas de nosso tempo. Quantas guerras foram feitas às mulheres nas muitas batalhas do mundo! Hoje estarrecidas/os imaginávamos que tal prática comum em muitas situações já não existia no meio de nós. Voltamos à barbárie, à conquista da ‘ frágil inimiga’ pelo prazer de vê-la ensanguentada, derrubada ao solo pela força bruta exaltada. Tomadas/os de indignação temos que reconhecer a complexidade do que presenciamos. Que prazer coletivo se sente depois de ter destroçado uma vida? Que gargalhadas e risos sarcásticos povoam as faces de jovens homens depois desse feito ignominioso? Seria o mesmo que matar um touro numa tourada, ou ver muitos galos feridos numa rinha organizada como espetáculo e competição? E depois do touro morto ou do galo ferido se vai agradecer a Deus ou à Virgem que guiou nossa espada e louvar o apoio de nossa torcida vencedora. E como a loucura coletiva do estupro e da matança dos galos ou touros as gargalhadas insanas dos que gozaram excitados pelo sangue e pelos corpos feridos ecoam como ovações por um troféu conquistado. Sem dúvida alguns agradeceram a DEUS pela deliciosa brincadeira e pela vitória... Afinal apenas feriram uma mulher, ser inferior, sujo de sangue... Nada mais do que isso... Uma mulher! Feriu-se também uma ave ou um animal de porte como um touro... Todos esses seres na realidade devem se colocar a nosso serviço e lazer! Uma rodada de cerveja é bem-vinda nesse momento de supremo deleite!

Mais uma vez não precisamos da palavra DEUS para denunciar esse horror e não precisamos que aqueles que se afirmam publicamente como representantes de Deus o façam publicamente. Na realidade eles apenas representam a si mesmos... Não exigimos que o façam porque não o fazem de coração contrito. E se não é assim não observarão os acordos, não viverão o que mostram acreditar. De nada servirão as penalidades maiores ou menores se o coração não for educado para o respeito do próximo, do meu outro eu. Nós, convictas/os dos valores que defendemos, queremos fazer valer o direito e a justiça entre nós... Como? Talvez começando tudo de novo na continuação daquilo que é... Nós nos recolheremos para estudar e nos treinar em uma ‘arca’ semelhante aquela de Noé... Abriremos nosso coração uns para os outros... Nós nos despiremos das roupas guardadas cheirando mofo... Descobriremos que já não se ajustam aos nossos corpos prenhes de novidade... Enterraremos as armas e os canhões assim como os excessos de ouro e prata... Faremos poemas olhando o mar e o céu estrelado... Então poderemos sair da arca e ir as praças cantar e fazer muita música... Já fizemos isso antes. Lembram-se? E a música e a dança serão tantas que contagiarão outros corpos que virão dançar também...
Vivemos em coletividade habitadas/os por nossas crenças e valores como frutos de um mesmo universo criador, ou melhor, de um ‘pluriverso’ multifacetário. Existimos diversos, uns aos olhos dos outros mesmo se o mais forte em nós for nossa individualidade. Mas, cremos que somos um a outra e a outra o outro, interdependentes... Caímos, erramos... E, renascemos uma no outro... Mesmo velhos ainda dá para nascer de novo e ir à praça pública... Mas, melhor seria sem usar a palavra Deus embora intuamos a nossa humanidade divina... Podemos entrar na música que de muitos lados nos convida a uma ciranda comum cantando “gracias a la vida” e acreditando na possibilidade de recomeçar, de fazer nascer músculos e carnes nos nossos ossos ressequidos como dizia o profeta Ezequiel...

Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.
É uma das principais defensoras da Teologia Feminista, irmã da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora. Aos 73 anos, tem mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática 


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