Por Marcelo
Barros
No contexto
social e político que, atualmente, vivemos no Brasil e em toda a América
Latina, é importante lembrarmos que nesse 07 de outubro se completaram 50 anos
do martírio do comandante Ernesto Che Guevara.
Vale a pena refletir que importância essa memória tem para nós e para a
luta pacífica por um mundo de mais justiça e igualdade eco-social.
No tempo
da ditadura militar brasileira e especialmente ao acompanhar as primeiras
etapas do MST nos acampamentos de Ronda Alta, RS e no Bico do Papagaio, eu e
outros companheiros tivemos de, não poucas vezes, arriscar a segurança pessoal
e a própria vida. Eu e muitos de nós fomos detidos e sofremos pressões e
ameaças. Em alguns casos, perseguições. Mas, isso não nos dá o direito de
julgar eticamente a luta do Che Guevara, Camilo Torres e de outros companheiros
que deram a vida no enfrentamento armado às ditaduras do nosso continente. Já
em 1967, mesmo ano em que o Che Guevara era assassinado, o papa Paulo VI, ao
deixar claro que a insurreição revolucionária, armada e violenta não deve ser o
caminho dos cristãos, fez uma ressalva importante. Escreveu: "a não ser em caso de ditadura evidente e
prolongada" Cf. Encíclica O desenvolvimento dos povos, n. 31). Qualquer
pessoa que analise a realidade latino-americana sabe que é exatamente esse o
caso de nossos países, nos quais se prolonga indefinidamente uma mais do que
cruel ditadura econômica e social, exercida pela elite que, desde o tempo da
colônia se apodera da terra e dos bens que, na mesma encíclica, o papa declara
serem bens comuns, de direito de todas as pessoas (P. P. 30).
Naqueles
anos da segunda metade dos anos 60, a Bolívia vivia uma ditadura militar cruel
e sanguinária, como tantas outras patrocinadas pelo império norte-americano.
Até hoje, Vallegrande é uma cidade perdida, no vale dos Andes que lhe dá o
nome. Açoitada pelos ventos frios que vem da cordilheira, até hoje, a pequena
cidade se mantém isolada entre caminhos de terra que desanimam qualquer
viajante menos afoito. La Higuera, povoado de cem habitantes, 60 km adiante e
em uma montanha mais alta, foi o local do martírio do Che. Ali se encontra o
Grupo Escolar onde o Che foi preso e sumariamente executado. Hoje, essa casa é um museu comunal.
Basta
percorrer a região para perceber que a miséria e o abandono do povo continua
igual ou pior. Em meio às imensas montanhas de pedra e areia, se erguem uma ou
outra casinha de lavrador. Mais adiante, mesmo se não se vê capim naquele
areal, algumas poucas vacas pastam. Ainda hoje, é difícil imaginar que alguém
possa viver ali.
A
população de traços indígenas traz na memória os tempos nos quais militares os
torturavam para que revelassem onde estavam os subversivos perigosos. Para não arriscar
a vida desse povo simples, o Che evitou contatos, a não ser cuidar dos doentes
quando recorriam a ele como médico. Mesmo arriscando sua segurança, ele nunca
deixava de exercer o seu compromisso de médico dos pobres que ele amava.
Até hoje,
é difícil compreender como o Comandante poderia imaginar que sua presença
nestas paragens isoladas e cumes quase intransponíveis iria suscitar grupos de
resistência à ditadura boliviana e assim incendiar o mundo com a revolução da
justiça. Só mesmo uma fé imensa na dignidade humana pode explicar sua fé na
vitória de uma campanha como aquela, com tão pouca gente e tão poucos recursos.
Como ele escreveu: "Luto porque creio na vocação dos povos oprimidos para
a liberdade". Ele acreditava que a causa da justiça jamais seria apagada e
acabaria vencendo. Por isso, ele e seus poucos companheiros arriscaram e deram a vida nessa luta. Foram
abandonados na montanha e entregues aos militares bolivianos. Esses,
assessorados por norte-americanos da CIA, prenderam todos e os mataram, alguns
em combate e outros, como o próprio Che, em um assassinato frio e banal.
Há 10 anos, na comemoração dos 40 anos do
martírio do Che, Dom Tomás Balduíno, eu e um pequeno grupo internacional ligado
ao MST, fomos a Valle Grande. Ali nos reunimos na velha lavanderia coletiva, onde
há o tanque sobre o qual colocaram o corpo do Che, nu, sujo e ferido de balas. Deixaram-no
ali exposto para humilhar os revolucionários e amedrontar o povo. Mulheres pobres cobriram o corpo com um lençol e o
cercaram de velas. Como as discípulas de Jesus ao descer da cruz o corpo do
Senhor. Até hoje, o tanque de pedra está
coberto de inscrições e recados com nomes de pessoas que saúdam o Che ou
pedem a graça de reviver seu espírito. Parece o túmulo de um dos antigos mártires cristãos, no qual as
pessoas vinham orar para serem fieis no testemunho. Ali, celebramos um culto
macro-ecumênico que nos abasteceu da paixão pelos pobres, pelos quais o Che deu
a vida. Como a cruz de Jesus, a morte do mártir tem um apelo de vida e de
vitória.
Ao se
declarar não crente, o Che se revelou mais espiritual do que se tivesse sido
adepto de alguma religião. Sua dimensão evangélica se manifesta na
universalidade de sua doação pela humanidade. Um poema de sua autoria mostra
isso. O título é: “Poema para Cristo”.
Diz assim: “Cristo, te amo. Não porque
desceste de uma estrela, mas porque me revelaste que o homem tem lágrimas e
angústias e chaves para abrir as portas fechadas da luz. Sim, tu me ensinaste
que o homem é Deus, um pobre Deus crucificado como tu. E aquele que está à tua
esquerda no Gólgota, o mau ladrão, também é um deus. Cristo, te amo”. (Che
Guevara, Nandahuauzu, Bolívia, outubro de 1967).
Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares. É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países
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