Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
O estado da educação brasileira é tão lamentável que nem dá ânimo de comemorar
o Dia do Mestre, em 15 de outubro. Este profissional, que deveria ser o
mais valorizado entre todos por ser quem forma as novas gerações e com isso
poder fazer de um país uma nação e um povo com projeto de futuro, encontra-se
hoje em estado de absoluta frustração.
Vemos universidades fechando, docentes sem receber salários há quase um ano,
reitores cometendo suicídio por culpa de uma Justiça abusiva e inconsciente.
Sem falar no ensino fundamental. Escolas sem professor, professores que
devem ter cinco a seis matrículas para poder viver de seu trabalho.
Estudantes desanimam e desistem de seus projetos e seus sonhos por acreditarem
que, na verdade, o que importa é correr atrás do dinheiro em profissões talvez
não tão nobres, porém mais lucrativas do que o ensino. Ou então preferem
embarcar em outras viagens mais imediatas e perigosas (mas excitantes) do que a
grande aventura do conhecimento.
De repente - e surpreendentemente - uma tragédia sem parâmetro, absurda
em sua infinita crueldade, rasga o horizonte e nos diz que nem tudo está
perdido. Janaúba, pequena cidade de Minas Gerais, e a creche
municipal Gente Inocente foram o cenário dessa tragédia e
também dessa esperança. Ali o vigia noturno Damião Soares Santos, um
homem solitário de 50 anos, que durante o dia fabricava e vendia picolés para
completar a renda, derramou um dos galões de álcool que usava para acelerar o
congelamento dos sorvetes sobre as crianças, queimando-as vivas.
Foi no pátio da creche, onde várias crianças se encontravam, que Damião deu
início a seu macabro ritual. A “gente inocente” que ali brincava e se educava,
acompanhada por professoras e pedagogas, foi transformada em labaredas vivas.
Mas no meio do caminho havia uma professora: Helley de Abreu Silva
Batista. Jovem mulher, mãe de três filhos sendo o menor de um ano. Ao ver
o que acontecia, entrou em luta corporal com o assassino para impedir que
levasse avante seu gesto tresloucado e fatal.
Lutou em desigualdade de condições e forças, mas fortalecida por sua
determinação de fazer tudo para salvar aqueles pequenos a ela confiados. Damião
acabou ateando fogo a seu próprio corpo e morreu junto com suas vítimas.
Helley não conseguiu salvar todos, mas vários não morreram devido à sua
intervenção. Ela passou um a um pela janela de volta à vida. Porém, a ela
mesma não pôde salvar-se. Sua entrada corajosa no meio das chamas para
dali retirar as crianças a fez sofrer queimaduras em 90% do corpo. Levada
para o hospital, não resistiu e morreu.
Todos os testemunhos sobre sua pessoa são unânimes em afirmar que era
apaixonada pelo que fazia. Sempre preocupada em promover novas formas de
ensino, para que os alunos tivessem melhor desempenho no aprendizado. Uma
de suas principais preocupações era a inclusão de alunos com algum tipo de
deficiência, área em que se especializou.
Ao ver a tragédia acontecendo e o perigo letal que ameaçava as crianças
esqueceu-se de si própria e pensou apenas neles. Lutou até o fim, mesmo quando
as labaredas já a atingiam e ameaçavam sua vida. A heroína de Janaúba é a
figura que hoje me parece dever ser homenageada quando se aproxima o Dia do
Mestre.
Seu gesto mostra que ser professor não é apenas
despejar conteúdos sobre os alunos que muitas vezes, com as mentes distantes,
apegadas a outros estímulos, ou malnutridos, ou deprimidos pelas condições
familiares em que vivem, não os assimilam. Trata-se de uma profissão que
é indissociável da vida e, ousaria dizer, da entrega da vida.
Helley se preocupava com os que tinham alguma deficiência, era sensível aos que
apresentavam algum problema. Não se tratava de uma docente que corria
atrás de sucesso e estatísticas de desempenho premiadas em rankings e
jornais. Amava o que fazia e por isso amava seus alunos, as crianças que
a ela ficavam entregues por boa parte de seu dia.
Demonstrou esse amor quando o ser professora não significou escrever no quadro
negro, ou mostrar mapas. O momento de sua intervenção, que foi também o
de sua morte, mostra alguém comprometido e responsável até as últimas
consequências com aqueles que estão entregues a sua docência. Ela lhes
deu a melhor lição, a melhor aula: a entrega da vida para salvar suas vidas.
Janaúba segue de luto e o país segue perplexo. Helley começa a receber
muitas homenagens, mais do que merecidas. Sua família sofre
muitíssimo. Nada substituírá sua presença maternal ao lado dos filhos,
sobretudo do pequenino de um ano. Nada pode igualmente consolar as
famílias das crianças que morreram vitimadas pelo fogo.
Mas em meio a toda essa tragédia e esse horror, a figura de Helley brilha como
luz, assim como o livro da Sabedoria diz que brilham os justos, como fagulhas,
como estrelas. E sua atitude diz que não há pecado maior que a graça, não
há desgraça maior que o amor, não há morte que vença a vida quando esta está
ancorada no bem e no serviço aos outros.
A matança dos inocentes em Janaúba permanece sombria tragédia. Mas tem a
iluminá-la a professora Helley, heroína que não se preocupou com a própria
vida, mas com a das crianças que lhe eram confiadas. Enquanto existirem
professores como ela, podemos dizer: nem tudo está perdido. É possível
reencontrar o verdadeiro caminho da educação. Tem que ser possível.
Do contrário, veremos nosso país afundado na lama da corrupção e da
libertinagem política, sem esperança de dias melhores.
Helley, a heroína de Janaúba, - que deve ter
outras irmãs em coragem e capacidade de amar esparsas pelo país – nos diz que
há que lutar sem perder a esperança. E por isso podemos dizer: Feliz Dia
do Mestre aos que são docentes e aos discentes que com eles aprendem e
aprenderam. Ou aprenderão. Feliz Dia da Educação. Educando e
educador são chamados a renovar seu compromisso de interação e diálogo
constante e profundo no desejo de descobrir o mundo e construir o futuro em
comunhão de destino.
Professora
do Departamento de Teologia da PUC-Rio, a teóloga é autora de “Teologia
latino-americana – Raízes e ramos” (Editoras Vozes e PUC-Rio), livro que acaba
de ser lançado.
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