Por Eduardo
Hoornaert.
Aqui
vão alguns apontamentos de caráter historiográfico acerca da base histórica (ou
não histórica) de três narrativas evangélicas que compõem a ‘saga de Natal’ que
celebramos nos dias de hoje: (1) o nascimento de Jesus; (2) o local de seu
nascimento; (3) o massacre dos inocentes, promovido pelo Rei Herodes o Grande.
Antes
de começar, lembro que tudo que se possa dizer sobre a vida histórica de Jesus
tem inevitavelmente a marca da incerteza, já que nossos informantes, os
evangelistas, não eram historiadores no sentido que hoje damos ao termo, mas
antes narradores teológicos, ou seja, narradores imbuídos de insistentes apelos
teológicos. Não sabemos ao certo onde Jesus nasceu, nem se teve irmãos
(provavelmente sim), nem como se pode definir, segundo atuais critérios
médicos, o que eram ao certo as muitas curas e as repetidas expulsões de
demônios que ele praticou, etc. No claro-escuro entre probabilidades e
incertezas há, decerto, como desenhar um perfil mais ou menos delineado de
Jesus histórico. Mas é um perfil, não um ‘retrato’.
1.
Acerca do nascimento de Jesus parecem ter circulado, nos
primeiros tempos, duas narrativas paralelas. De um lado ele é mencionado como
‘filho de José’ (Lc 4, 22; Jo 1, 45 e 6, 42), de outro lado como nascido de uma
virgem ‘por obra e graça do Sopro Santo’. Essa última tradição aparece com
muito realce no primeiro capítulo do Evangelho de Mateus e no terceiro capítulo
do Evangelho de Lucas, ambos redigidos por volta do ano 80, aproximadamente 50
anos após a morte de Jesus. Essas narrativas representam uma evolução já
avançada de uma tradição consolidada por uma transmissão oral que é, como se
sabe, muito sensível aos sabores do tempo. Há quem relaciona o
paralelismo das narrativas (pai humano, pai divino) de Mateus e Lucas a uma
tradição judaica, segundo a qual pessoas importantes teriam ao mesmo um pai
humano e um pai divino (Lincoln, A. T., Born of a Virgin?. London, 2013).
2.
Acerca do local do nascimento de Jesus existem igualmente duas
tradições. Há textos que fazem crer que Jesus tenha nascido em Nazaré. No trato
comum, os contemporâneos falam em ‘Jesus de Nazaré’, o que pressupõe que ele
teria nascido naquela aldeia (Jo, 1, 46 e 7, 41; Mt 2, 23). Mas existe uma
insistente tradição, que se expressa em pelo menos sete textos (Mt 1, 1; Lc 1,
32; At 2, 29-32; Rm 1, 3; 2Tm 2, 8; Ap 22, 16 e Hb 7, 14), que situam o local
de nascimento de Jesus em Belém. Uma insistência teológica, sinal da
importância que os primeiros escritores deram à imagem de ‘Jesus Ungido (em
grego: Cristo)’, ou seja, à imagem de um novo Messias do tipo Davi, um ‘filho
de Davi’ (lembre-se que Davi foi ungido três vezes). Eis uma das primeiras
preocupações teológicas que se detectam em torno da figura de Jesus. Já faz
tempo que os biblistas detectaram falhas nas ‘árvores genealógicas’ que tanto
Mateus (capítulo 1) como Lucas (capítulo 3) apresentam como justificativas de
uma pretensa origem davídica de Jesus. Elas são muito deficientes. Há também um
fator cultural, relacionado à mentalidade da época. É possível que, no tempo de
Jesus, famílias importantes tenham tido o cuidado de construir ‘árvores
genealógicas’ com a intenção de comprovar alguma descendência davídica que lhes
conferisse consideração. Quantas ‘árvores genealógicas’, através dos tempos e das
culturas, não se baseiam nesse tipo de justificativa de grandeza?
Outro
ponto: comparando as narrativas de Mateus e de Lucas se detectam várias
incongruências: Mateus dá a entender que o casal José e Maria, já antes do
nascimento do filho, vive em Belém, enquanto Lucas apela para um censo
demográfico que teria sido organizado pelo governo central do Império e que
teria ocasionado o deslocamento do casal para a cidade paterna, ou seja, Belém.
Esse censo não encontra confirmação nos registros históricos do Império romano.
Tudo
indica que a razão de uma localização do nascimento de Jesus em Belém esteja
expressa nos versículos 4 a 6 do capítulo 2 de Mateus:
E tu,
Belém, terra de Judá,
Tu não
és a menor das cidades de Judá,
Pois
tu darás ao meu povo Israel seu pastor
Aquele
que o governará.
Esses
versos são uma adaptação ligeiramente modificada de versos do profeta Miqueias
alusivos ao nascimento de Davi:
E de
tu, Belém Efrates
Pequena
demais para ser contada entre as cidades de Judá
Sairá
aquele que governará Israel (Mi 5,
1).
Com
tudo isso, não se pode excluir totalmente a possibilidade de Jesus ter nascido
em Belém. Afinal, não sabemos nada de certo acerca do local de nascimento de
Jesus. O que sabemos é que ele nasceu entre os anos 7 e 4 aC, pois no ano 4 aC
Herodes o Grande faleceu.
3.
Umas breves palavras ainda sobre o ‘massacre dos inocentes’. É estranho que o
historiador judeu Flávio Josefo, que descreve em detalhes numerosos atos de
crueldade praticados por Herodes na época do nascimento de Jesus, não tenha uma
palavra sequer sobre o massacre em Belém. Isso também fragiliza a hipótese de
Jesus ter nascido em Belém.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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