Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Impressiona-me o fato de que cada vez menos escrevo
sobre a conjuntura do país e do mundo. Será talvez porque não contêm esses
relatórios de desgraças que ouço todo dia na mídia e leio nos jornais e nas
redes sociais nenhuma fonte de inspiração. Atiram para baixo,
desestimulam, não são geradores de criatividade e entusiasmo.
Comentar novamente as roubalheiras, as prisões preventivas, as denúncias, os
três poderes se engalfinhando? Não há mais desejo nem forças. A
corrupção atinge até mesmo a afetividade, aquele nível da identidade pessoal
onde nascem e brotam as ideias, as intuições, as novidades, as emoções.
Por isso, volto-me para o Evangelho, boa notícia, fonte perene de
inspiração. E procuro escutar Jesus de Nazaré, o poeta do Reino de
Deus. E ouço-o perguntar: a que se parece o Reino de Deus? Ponho toda a
atenção em suas metáforas. O Reino de Deus se parece ao fermento que uma
mulher misturou com uma grande quantidade de farinha, e toda a massa ficou
fermentada. O Reino de Deus é semelhante a um homem que lança a semente
sobre a terra. Noite e dia, estando ele dormindo ou acordado, a semente
germina e cresce, embora ele não saiba como.
O Reino de Deus é como as crianças inocentes e alegres que vinham até Jesus,
desobedecendo aos discípulos que queriam tirá-las dali. É como a viúva que
depositou para oferta no Templo tudo que tinha para viver. É como o pai
que tinha dois filhos e preparou uma festa cheia de vinho, comida e alegria
para receber de volta o mais novo, que havia saído de casa e dilapidado todos
os seus bens.
O Reino de Deus é como as pessoas, homens, mulheres e crianças. E é como
a terra que silenciosamente faz seu trabalho quando todos dormem, elaborando a
germinação da vida. O Reino não deve ser procurado aqui e ali, pois já está no
meio de nós. Por quê? Porque nós o construímos. Porque nós o
testemunhamos.
Essa reflexão brota quando entramos no tempo do Advento, da espera, da
esperança que vai se depositar inteiramente em um menino nascido de mulher que
andará pelo mundo como o Reino de Deus em pessoa. Esse menino, parecido com
todos os meninos, fará sinais, dirá palavras, contará parábolas que falarão
sobre o que é o Reino de Deus.
O
grande escritor português José Saramago tinha um avô que também era capaz de
fazer sentir a proximidade do Reino de Deus com suas histórias e relatos.
O avô de Saramago não tinha fé nem religião. Era analfabeto, pobre e
camponês. Criava porcos em uma aldeia do Ribatejo. E, no entanto,
seu neto escritor, que ganhou o prêmio Nobel, o identifica como “esse que,
deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o
universo em movimento apenas com duas palavras.“
O Reino de Deus é o universo em movimento, fiel à sua identidade de ser morada
da vida. Por isso, Jesus diz que ele é como a mulher que leveda a massa e
cozinha o pão, como o homem que semeia a terra para que haja colheita e
alimento, como o pai que perdoa o filho que se comportou mal porque o ama e a
casa estava vazia sem sua presença. É como a mãe terra, cujo útero se
revolve incessantemente, fazendo germinar a semente, crescer o broto, acolher as
raízes e levantar as árvores.
O mundo é a morada de Deus e todo aquele que nele habita e não bloqueia seu
movimento é artífice do Reino que pode acontecer em seu seio. Por isso,
nesses tempos sombrios, de desesperança, de horizontes curtos, ética em vias de
extinção, importa descobrir as palavras que podem pôr o universo em
movimento. Ou os gestos que fazem de ossos secos pessoas com músculos e
carne, cheias de vida e forças. Ou os segredos não totalmente desvendados
que dizem respeito à vida e suas fontes.
O Reino de Deus hoje, nesse início de Advento, para aqueles e aquelas que
teimamos em acreditar na criança que há de vir, já está presente. A que se
parece? À beleza do mundo, ao encanto das palavras, à alegria ruidosa das
crianças. E pode ser acionado e visibilizado pela poesia, pelos relatos, pelas
brincadeiras e jogos gratuitos, pelos beijos e abraços, pelos gestos de
carinho.
O Reino de Deus se parece à humanidade que o próprio Deus assumiu em Jesus e
sua Encarnação. Iniciando o tempo litúrgico que prepara para o Natal,
sinto que se não vemos o Reino acontecendo é porque estamos consentindo em que
nossa humanidade seja roubada e vilipendiada.
Sejamos humanos, apenas humanos, como os personagens da infância de Saramago,
que tinham pena de morrer porque o mundo era tão bonito e por isso
reverenciavam a vida até mesmo dos filhotes de porquinhos que criavam. Sejamos
apenas humanos, sabendo abrir os sentidos e o coração a todas as formas de
amor, desde a justiça até o êxtase.
Ser humano é tarefa difícil, embora simples. Aprender com as crianças
ainda é o melhor caminho. Aprender com essa Criança tão esperada que é
ela mesma um relato de salvação é um desafio ao mesmo tempo profundo e
belo.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora
do Departamento de Teologia da PUC-Rio.
A teóloga é autora de “Simone Weil – Testemunha da paixão e
da compaixão" (Edusc)
Copyright 2017 – MARIA
CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização.
Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário