Maria
Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio
O Advento avança com sua proposta de conversão e
seus protagonistas. Um deles é o precursor, o profeta “maior do que todos
os filhos de mulher”. Neste tempo litúrgico, especialmente, sua figura se
levanta como aquele que denuncia a corrupção em todos os níveis em que esta
existe, mantendo-se inatingível por este verme que corrói a dignidade e a vida
justa, levando à idolatria que adora falsas divindades e não o Deus
verdadeiro.
Em tempos de tamanha corrupção, faz-nos bem olhar
para aqueles que a denunciam. E João Batista é um deles. Do deserto já se
ouvia sua voz clamando por conversão e mudança de vida. Seu olhar de
profeta via a corrupção acontecendo e ele sabia que a vida que é Deus mesmo se
encontrava ameaçada.
Corrupção vem do latim corrumpere, “destruir,
estragar”. Em português, o
substantivo feminino corrupção deriva do latim corruptĭo, com
o sentido de «deterioração», processo ou efeito de corromper». E este
substantivo pode significar:
a) deterioração, decomposição física, orgânica de algo ou putrefação; ou ainda b) modificação, adulteração das características originais de algo.
a) deterioração, decomposição física, orgânica de algo ou putrefação; ou ainda b) modificação, adulteração das características originais de algo.
Desde tempos imemoriais, a corrupção está presente
como possibilidade maléfica para o agir e o comportamento humanos. Em sua
ambiguidade, o ser humano, homem ou mulher, “deseja o bem, mas não o pratica; e
não deseja o mal, mas o pratica”. Assim já dizia Paulo de Tarso na Carta
aos Romanos 7, 19. Ser humano é ser dividido, é ser campo disputado, é
ter inclinações em mais de uma direção e, portanto, dever exercitar a liberdade
a cada minuto e a cada passo.
Por
sua vez, idolatria encontra sua raiz em ídolo, do grego “eidolon”, que
significa aspecto, imagem mental, fantasma, aparição, assim como também imagem
material, estátua. E ainda de “eidos”, que é forma. Ambos os termos
se juntam a “latreia”, serviço, adoração e aí temos a palavra idolatria: o
culto e o serviço prestados a algo que é falso. O ídolo é, então, uma
representação da divindade, a qual se faz objeto de culto, usurpando essa
imagem o lugar de Deus e recebendo em vez d´Ele a adoração ou o culto.
Para
a Bíblia, o principal problema na idolatria é a traição. Não se trata de um
erro metafísico, uma questão de ontologia, mas de ética. A questão chave não é
o que as pessoas acreditam, mas como elas se comportam. A idolatria é
principalmente uma forma de vida, não uma visão metafísica de mundo. Por esta
razão, as principais metáforas bíblicas da idolatria são o adultério e a
deslealdade sob todas as suas formas, inclusive a política.
Na
Bíblia hebraica, a corrupção se torna próxima à idolatria porque, em qualquer
de seus níveis, seja ele moral ou político, é sempre uma traição à
verdade. Ou seja, trata-se de pautar o comportamento, as atitudes, a
ética sobre bases que não são verdadeiras. Adora-se o não verdadeiro.
E essa não verdade corrompe a atitude da adoração que se presta e transborda em
frutos envenenados de corrupção os mais diversos, sendo o pior deles a
justificação de comportamentos daninhos aos mais vulneráveis e a exploração dos
pequenos e pobres.
Alguns
profetas em Israel denunciaram esse estado de coisas. Por causa disso, foram
perseguidos e mortos. Assim foi com João Batista, o profeta de palavras de fogo
que chamava à conversão o povo infiel e reconheceu em Jesus que com ele andava
alguém maior diante de quem era importante retirar-se. “É preciso que Ele
cresça e eu diminua”.
O
mesmo João Batista, mais tarde, quando Jesus já pregava o Reino de Deus pelas
cidades e aldeias, denunciará a corrupção do rei Herodes, que tomara para si a
mulher de seu irmão. “Não te é lícito tê-la por mulher”, clamou João
diante do rei. E foi preso. Ganhou por isso o ódio de Herodíades, mulher
de Herodes, que terminou conseguindo que sua jovem e sedutora filha Salomé
pedisse a cabeça do profeta em uma bandeja de prata.
Herodes
– covarde como em geral o são os corruptos de todos os perfis – havia lhe
prometido tudo que quisesse após a dança com que o encantara. Tudo, mesmo
que fosse mais do que a metade de seu reino. Teve que conceder à
ambiciosa jovem a vida do homem cuja cabeça valia mais do que a metade de um
reino.
Hoje
a corrupção idolátrica maior não visa tanto a luxúria como a cobiça e o
enriquecimento ilícito. A sociedade em que
vivemos é corrupta. E, portanto, idólatra. Deforma constantemente seu
rosto e seu perfil vivendo na mentira, na clandestinidade e na espoliação
descarada e iníqua dos mais pobres e vulneráveis. Acumula riquezas
incalculáveis às custas da exploração daqueles que mal têm o que comer e que
trabalham de sol a sol para ganhar um salário inferior a suas necessidades.
Sendo corrupta, é igualmente idólatra. Ama com verdadeira adoração as
coisas materiais e as erige em ídolos que passam à frente dos verdadeiros
valores. Transforma o mercado, o lucro, a riqueza em deus e vive da e na crença
nesse Deus.
Já
o Papa Francisco afirma a aproximação entre corrupção e idolatria:
“A corrupção sempre encontra o modo para se justificar,
apresentando-se como a condição “normal”, a solução de quem é “esperto”, o
caminho para atingir os seus objetivos. Tem uma natureza contagiosa e
parasitária, porque não se nutre do que de bom produz, mas do que subtrai e
rouba. É uma raiz venenosa que altera a sã concorrência e afasta os
investimentos. Enfim, a corrupção é um “habitus” construído sobre a idolatria
do dinheiro e da mercantilização da dignidade humana... “
Que
neste Advento a figura luminosa e incorruptível de João Batista nos abra os
caminhos da justiça e da fidelidade, a fim de podermos construir um mundo e
muito concretamente um Brasil menos deteriorado e putrefato para legar a nossos
filhos e netos.
A teóloga é
autora Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora
PUC-Rio e Reflexão Editorial.
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