Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Naquele tempo, o anjo do Senhor dirigiu-se a uma jovem mulher, noiva do
carpinteiro José. E o nome dela era Maria. O anjo lhe revela uma
notícia impossível: uma gravidez inesperada e não planejada. Dialogando com o
mensageiro divino, ela assume o incompreensível mistério que nela se
realiza. E o assume com todas as suas consequências.
Em uma sociedade patriarcal como a de seu tempo e seu lugar, uma gravidez
acontecida fora do momento certo e da instituição abrigada por lei era algo
perigosíssimo. O compromisso de noivado equivalia ao matrimônio e uma
infidelidade dentro deste contexto podia resultar em severa punição, até mesmo
o apedrejamento reservado às adúlteras.
Não é difícil imaginar a dificuldade de todo o processo da concepção de Jesus
que Maria enfrentaria sem o concurso de José. Igualmente é fácil imaginar
o que aconteceria a ela em uma cultura patriarcal, segundo o relato de Mateus,
se José não houvesse decidido tomá-la por esposa crendo no que Deus lhe dizia e
passando além da letra da lei.
Trata-se de algo profundamente revolucionário a
hipótese de que o Espírito de Deus repouse em plenitude sobre uma mulher que
apresenta uma gravidez de origem ignorada ou suspeita. Mesmo se o que
acontecia na corporeidade de Maria fosse fruto de uma violência – da qual eram
vítimas muitas mulheres daquele tempo, jovens camponesas que sofriam o ataque
dos soldados romanos de passagem - isso a poria em situação de extrema
vulnerabilidade, ameaçada pelo desprezo da sociedade em que vivia.
Por isso, é ainda mais extraordinário que
ela, com a força que lhe foi dada por Deus, tenha sido capaz de converter em
bem uma situação de insegurança e incalculável risco. Parece-nos que aí
está em movimento e acontecendo de fato uma revelação que ilumina problemas tão
contemporâneos como a violência contra a mulher, desde a pornografia até as
agressões físicas, as violações e as escravidões sexuais.
A jovem aceita o que lhe é anunciado como graça e bênção. O menino que
nascer será Filho do Altíssimo. No centro do plano de Deus está uma
mulher jovem e grávida. Uma jovem mãe.
O Advento que vivemos e celebramos é um tempo de espera, dessa espera que
acontece no ventre fecundo de Maria. Espera lenta e gozosa, como a da
gravidez de Maria e de toda gravidez. Em seu ventre livre e disponível
cresce a semente da vida, o broto do Povo de Deus, o Salvador a quem dará o
nome de Jesus, que significa Javé salva.
Maria é única pela enorme importância que tem o mistério que nela acontece no
imaginário religioso cristão. Mistério que no fundo está presente em toda
mulher habitada por outra vida, gerando um novo ser, um novo membro do gênero
humano. No caso de Maria, este que é gerado tem um destino que supera a
mãe, assim como a todos os outros seres humanos. E que por isso torna sua
pessoa e vocação matriz de outras relações muito ricas e complexas: a de Deus
com a humanidade, a do homem com a mulher, a do filho com a mãe.
Com ela e a partir dela, o Cristianismo e por causa dele o Ocidente encontrou
um discurso sobre a maternidade que ultimamente parece correr o risco de
perder. Um novo olhar sobre o mistério de Maria exorciza esse risco, pois
reabilita a corporeidade feminina – coisa que a arte, com relação a Maria, já
andou fazendo – apresentando positivamente a erótica feminina, impossível sem
essa glorificação do corpo da mãe judia do homem Jesus.
O culto a Maria exorciza em parte a culpabilidade imposta à mulher desde Eva e
suas filhas. E torna possível uma ética para a modernidade, que sem o
concurso das mulheres, não poderá ser construída. Trata-se de uma ética que não
se confunde com a moral, que não evita a iniludível problemática da lei; ao
contrário, lhe dá corpo, linguagem e fruição.
Em Jesus, o próprio Deus assumiu a carne humana, carne de homem e de
mulher. O Filho de Deus é igualmente o filho de Maria de Nazaré...nascido
de mulher. Este que vigilantes esperamos e cujo nascimento celebraremos no
Natal não é diferente daquele que nasceu da carne de Maria. Desta mulher
galileia, Jesus de Nazaré recebeu a carne reconhecida e aclamada pela Igreja e
pela fé cristã como carne de Deus.
Nascido de Maria, Jesus de Nazaré andou pelos caminhos de terra da humanidade.
Tendo nascido do útero desta jovem mulher nazarena, nutrido e alimentado por
sua carne e seu leite, cresceu em graça e sabedoria, e surpreendeu seus
contemporâneos, os quais, vendo os maravilhosos e poderosos sinais que
realizava disseram um ao outro: “É este o filho do carpinteiro? Não se chama
sua mãe Maria e não está no meio de nós? “
No centro do mistério da Encarnação, o Novo Testamento situa o homem e a
mulher, Jesus e Maria, Deus que assume a carne humana dentro e através da carne
de uma mulher, “nascido de mulher”. Deus não se fez homem, não se identificou
apenas com uma metade da humanidade. Ele se fez carne, carne de homem e
de mulher, a fim de que o caminho para o Pai possa passar necessariamente
através da condição humana total, masculina e feminina, porque Deus criou a
criatura humana macho e fêmea.
A afirmação “Deus se fez carne” deve ser completada por outra de análogo valor:
“Deus nasceu de uma mulher”. Ambas significam um extraordinário salto
qualitativo na consciência histórica da relação da humanidade com Deus. A
descoberta de que não há mais necessidade de buscar a Deus no estrito
ritualismo ou na letra da Lei. Deus pode e quer ser descoberto no nível
mais frágil dos homens e mulheres. Nos pobres e nas vítimas da injustiça
e da violência, nas mulheres grávidas e nas crianças pequenas está a definitiva
interpelação para a humanidade.
O mistério da Encarnação de Jesus na carne de Maria ensina que o ser humano não
está dividido entre um corpo de pecado e defeito e um espírito de grandeza e
transcendência. O mistério da Encarnação está enraizado exatamente na
fragilidade, na pobreza, e é nos limites da carne humana – carne de homem e de
mulher – que a inefável e infinita grandeza do Espírito pode ser contemplada e
adorada.
Professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, teóloga
e autora Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora
PUC-Rio e Reflexão Editorial.
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