Por Eduardo Hoornaert
Faz um ano e alguns meses
que publiquei pela Paulus o livro ‘Em busca de Jesus de Nazaré: uma análise
literária’. Gostaria de tecer aqui algumas considerações em torno de
comentários que recebi acerca desse livro.
1. A primeira coisa que
tenho a dizer é que se trata de um trabalho inconcluso, provisório. Não só
porque aí me limitei a trabalhar com três escritores, Paulo, o anônimo da Carta
aos Hebreus e Marcos, ou seja, com a primeira literatura da tradição cristã,
situada entre os anos 50 e 70 e deixei de lado os Evangelhos de Mateus, Lucas
ou João, mas também porque meu livro nem de longe se compara com dois livros
recentemente publicados: ‘Zelota’, de Reza Aslan, publicado pela Zahar do Rio
em 2011 e ‘Jesus, aproximação histórica’, do sacerdote católico J.A.
Pagola, publicado pela Vozes de Petrópolis em 2010. Dois livros admiráveis, eu
diria necessários e por enquanto não superados, pelo menos no que sei sobre o
assunto. Enquanto Aslan trabalha a fundo, baseado em estudos de vinte anos, a
dimensão política da ação de Jesus, Pagola revela aspectos importantes da ação
de Jesus, pouco comentados na literatura corrente, como por exemplo a crise
entre João Batista e Jesus (capítulo 3: buscador de Deus). Penso que esses dois
livros constituem leitura obrigatória para quem quiser hoje se aprofundar no
conhecimento de Jesus numa visão história.
2. Se meu livro contém
alguma originalidade, é no método utilizado, como consta no subtítulo: ‘uma
análise literária’. Deixe-me explicar em poucas palavras o que entendo com
isso. A convicção da necessidade de submeter os evangelhos a uma análise
literária que só me veio por volta do ano 2000, quando eu já tinha 70 anos. Eis
como se passaram as coisas comigo. Em 1975, Michel de Certeau, jesuíta francês,
passou por Recife e se encontrou conosco durante três dias. A questão, para
nosso pequeno grupo de pastoralistas, era a religiosidade popular e nosso
visitante, num determinado momento, disse, como de passagem: ‘se você quiser
entender o discurso do povo, leia Wittgenstein’. Essa frase ficou 25 anos
anotado em meus apontamentos, sem que lhe desse importância. Em 2000, pensando
em escrever sobre Jesus numa perspectiva histórica, me dei conta que os
evangelhos são ‘discursos do povo’. Aí me meti a ler Wittgenstein, durante três
anos. Ele é, com outros famosos filósofos do século XX (Foucault, Chomsky,
Ricoeur, Bakhtin), um linguista. A obra principal de Wittgenstein
(Investigações filosóficas, Vozes, Petrópolis, 2005, 4a ed.) se apresenta como
um álbum de 693 aforismos aparentemente desconexos, frases soltas, uma
‘paisagem variada’ de considerações em torno do conhecimento. Wittgenstein tem
algumas metáforas que esclarecem o que ele pensa acerca do tema. Ele compara as
pessoas a moscas dentro de uma garrafa aberta. Voam de lá para cá sem encontrar
a saída. Numa outra imagem, ele as compara a pessoas que andam perdidas num
labirinto. Há uma saída, mas as pessoas não a encontram. O filósofo usa também
a imagem da neblina: as pessoas não enxergam com clareza de que se trata quando
ouvem discursos. Ficam andando para lá e para cá. É que a maioria dos discursos
são produzidos para enganar as pessoas e as meter dentro da garrafa, do
labirinto, da neblina (isso foi escrito nos anos 1940 e encontra plena
confirmação em nossos dias). Daí o subtítulo de meu livro: ‘uma análise
literária’. Basicamente um trabalho de aprendiz, discípulo tardio de
Wittgenstein. Ao descrever aqui como foi meu caminho, não quero dizer que
precisa seguir algum filósofo linguista para entender os evangelhos, mas, isso
sim, que precisa ‘dissipar a neblina’, ‘sair da garrafa’, ‘encontrar a saída do
labirinto’.
3. Atualmente, a bíblia é
um labirinto para muitos, um mundo de errâncias confusas, para lá e para cá, em
textos e citações, sem saída. O pregador retira um texto de seu contexto e o
comenta a seu entender. As pessoas vão para casa com alguma frase na cabeça,
uma citação bíblica, uma ‘palavra de Deus’. Mas permanece a neblina que não se
dissipa. É o fundamentalismo. Meu livro é antes de tudo uma alerta diante
o perigo fundamentalista. Como escrevi na apresentação do livro, dirigida
à editora, já em 2015: ‘A curto ou médio prazo, o tema do fundamentalismo
entrará na agenda daquelas igrejas cristãs que manifestem uma responsabilidade
mínima no tocante à boa orientação de seus fiéis. O que se verifica hoje é uma
maré de interpretações irresponsáveis e injustificadas da bíblia, que
ameaça inundar por inteiro os campos confessionais e transformar o
cristianismo num movimento entregue a interesses particulares. Há de se
estabelecer algumas regras básicas de interpretação de textos bíblicos, que
respeitem o contexto em que esses mesmos textos foram redigidos, assim como as
intencionalidades próprias de seus escritores e as culturas dentro das quais se
formam os discursos. Existe uma diferença fundamental entre uma interpretação
bíblica totalmente à toa, que parece estar em voga hoje, e uma interpretação
que, de qualquer modo, se assenta em análises literárias e históricas
justificadas. Neste ensaio de análise literária dos três primeiros escritos do
movimento de Jesus se apresentam algumas pistas de leitura justificada, que
eventualmente podem servir para a leitura de textos bíblicos em geral’.
4. Termino essas
considerações com um pequeno exercício em análise literária. Proponho que
leiamos um trecho do capítulo 12 do Evangelho de Lucas, considerado difícil por
muitos exegetas. Lembro que uma análise literária implica no reconhecimento da
cultura dentro da qual um discurso é pronunciado. Ora, nas culturas semitas do
tempo de Jesus, as pessoas acreditavam que ‘sopros malvados’ ou ‘sujos’,
demônios, forças do inferno, etc. atormentavam as pessoas, causando doenças e
sofrimentos. Se Jesus aparece, nos evangelhos, como um bem-sucedido exorcista e
milagreiro, é dentro desse enquadramento cultural. No texto que estamos
examinando, Jesus exclama: eu vim derramar fogo sobre a terra e gostaria
tanto que pegasse logo. Tenho de ser batizado num (novo) batismo e me
atormento, pois não vejo a hora disso acontecer. Vocês pensam que vim trazer a
paz sobre a terra? Nada disso. Eu trago a desunião. Doravante, se cinco pessoas
moram numa casa, elas estarão divididas, três contra duas ou duas contra três.
Pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e filha contra mãe, sogra
contra nora e nora contra sogra (Lc 12, 49-53). O que ele quer dizer com
isso? O versículo 57 oferece uma interpretação plausível: por que vocês
não descobrem o que é certo por vocês mesmos? Por que correm atrás de mim?
O filho pensa pela própria cabeça, mas o pai ainda pensa pela cabeça de outros.
Daí a confusão. Em grego, o verbo aqui é ‘krinein’: pensar criticamente, julgar
de forma independente. Trata-se de uma capacidade de discernimento que não vem
de fora, mas de dentro, da consciência. Para além das imagens transmitidas.
Penso que esse texto de Lucas faz alusão ao turbilhão de imagens que assaltam a
mente de Jesus quando ele entra em contato com muitos de seus conterrâneos, que
parecem ficar fascinados com os espíritos maus que rondam pelo mundo, os
demônios das sete profundezas subterrâneas, os dragões, as serpentes, os
monstros, as maldições, as perturbações assombrosas, as máscaras de cifres
ameaçadores, os carrascos, os tiranos do mal, os ‘divisores’ (diabolos), as
turvações, as perturbações, as dissoluções, as tiranias, a cauda que varre o
mundo, os morcegos que chupam a vida, as unhas que arranham todo sinal de vida,
as presas enormes, o sol negro, as trevas de Lucifer (o anjo carregado de levar
a luz vira o príncipe das trevas), o adversário, os maus pensamentos, a
desordem na consciência humana, a enganação, o demônio infiltrado na história.
Jesus, desde o momento em
que manda Satanás ficar calado (Mc 1, 23-28) no episódio na sinagoga de
Cafarnaum (o primeiro milagre), desafia imagens que tanto ele como seus
ouvintes receberam desde a infância: o Satanás, as forças do mal, os demônios.
Jesus vê Satanás ‘cair do céu que nem um relâmpago’ (Lc 10, 17-18). Ele diz:
‘sai, Satanás’ (Mt 4, 10), ‘vai embora, Satanás’ (Mt 16, 23). Não liga para Satanás.
Ao mesmo tempo em que ouve
os lamentos do povo, Jesus enxerga a luz, a boa mensagem da luz, o evangelho.
Ele passa por um processo, depois de abandonar os trabalhos com João Batista.
Começa a enxergar os anjos, mensageiros de Deus, guardiões da vida, condutores
de astros e homens, protetores dos filhos de Deus. Abandona o turbilhão de
demônios e ‘sopros imundos’. Enxerga Michael, Gabriel, Rafael, os protetores da
vida, enxerga os serafins em torno do trono de Deus, como Isaías, descobre os
anjos da guarda a proteger as pessoas. Aparece uma nova visão do mundo, uma boa
notícia para os pobres, marginalizados e rejeitados da terra, um
evangelho, a conversão de demônios em anjos. O batismo de João está
superado, pois fica baseado na falsa premissa da luta entre o bem e o mal,
entre a virtude e a maldade, entre os anjos e os demônios. A nova premissa
consiste na conversão de demônios em anjos, da maldade em bondade.
Vocês
escutaram: olho por olho, dente por dente.
Mas
eu digo: não resistam ao mal.
Alguém
lhe bate na face direita? Ofereça a outra.
Alguém
lhe tira a túnica? Dê-lhe também o manto.
Alguém
o obriga a carregar suas bagagens ao longo de uma légua a pé? Ande duas.
Vocês
ouviram: ame seu próximo e odeie seu inimigo.
Mas
eu digo: ame seu inimigo, reze por quem o persegue.
Assim
você será filho do Pai que está nos céus.
Que
mérito há em amar os que nos amam?
É
assim que amam os fiscais de impostos.
Ajam
como devem agir, assim como seu Pai nos céus age como deve ser (Mt
5, 38-48)
Há de se abandonar João
Batista, o profeta das calamidades, e pregar o Reino de Deus, a boa notícia do
Reino que vem. A proposta não é mais religiosa, mas humanitária:
Vejam:cegos veem, coxos andam, leprosos são purificados, surdos ouvem, mortos
ressuscitam. Uma boa notícia aos pobres. Feliz aquele que não se escandaliza
comigo (Mt 11,5).Desaparece o demônio,
aparece um Deus que perdoa sempre. O Deus de Orígenes e de outros Padres das
primeiras gerações. Jesus se diferencia radicalmente de qualquer religião. Não
se baseia no sagrado, na autoridade de uma lei ou tradição, mas na ação
libertadora, na ação evangélica do perdão, da misericórdia, do diálogo, da
superação das diferenças. Não se baseia na religião, mas no evangelho. A nova
lei é a do amor, exercida a partir da própria consciência do indivíduo guiado
pelo mandamento do amor de Deus e do próximo que ‘resume toda a revelação’. Não
se trata mais de adorar a Deus, mas de amar o próximo. Nele consiste doravante
o absoluto de Deus. O amor torna-se ‘o princípio da salvação’. Não se trata
mais de se dedicar a Deus, mas dTe se dedicar ao próximo.
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro
fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina
(CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas
origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
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