Por Frei
Betto
Você é capaz de identificar uma pessoa de esquerda? De direita é óbvio: defende
a primazia do capital sobre os direitos humanos, o caráter sagrado da
propriedade privada, apoia a privatização do patrimônio público, venera o
gigantismo dos EUA, apregoa que “bandido bom é bandido morto”; e costuma ser
racista, homofóbica e indiferente aos direitos dos mais pobres.
Ao longo de 12 anos de governo do PT, a direita se manteve no armário. Não
tinha razões para exibir as garras afiadas, já que se beneficiava
economicamente (robustez da Bolsa de Valores, isenções tributárias, benesses do
BNDES, captação de investimentos estrangeiros etc).
Bastou a economia brasileira dar sinais de insustentabilidade para a direita
sair do armário, decidida a assumir o controle da nação. A exemplo do que
ocorrera em Honduras e no Paraguai, armou-se aqui um golpe parlamentar.
Destituiu-se uma presidente democraticamente eleita, isenta de qualquer
acusação de ter cometido crime, para empossar Temer, acusado de vários e graves
crimes.
A direita errou o alvo. Constrangida, não bate panelas quando Temer dá as caras
na TV, nem ocupa as ruas para protestar contra a corrupção escancarada. Mas
vocifera raivosamente diante do
menor indício de que o Brasil possa vir a ser novamente governado pelo petismo.
O que me parece estranho é a oposição não ir além dos limites do Congresso. Por
que o “Fora Temer” não ganha as ruas? Por que os movimentos sociais, sindicais
e estudantis permanecem imobilizados, exceto quando se trata de reivindicações
pontuais e corporativas, como ocupações de áreas urbanas e rurais? Onde se
enfiou a esquerda brasileira?
Somos, hoje, uma esquerda envergonhada. A corrupção nos atingiu e abateu a
nossa moral. Ficamos calados frente ao ajuste fiscal proposto pelo governo
Dilma. Trocamos um projeto de nação por um projeto de poder. Não cuidamos da
alfabetização política do nosso povo. Não criamos uma mídia capaz de se
contrapor à versão da direita.
Nossa “pátria-mãe”, a União Soviética, ruiu. A China enveredou pelo capitalismo
de Estado. O futuro da Revolução Cubana é incerto. “Proletários de todo o
mundo, uni-vos”, exortava Marx. Foram os biliardários do mundo todo que se
uniram em Davos. Como assinalou o historiador Perry Anderson: “Pela primeira
vez, desde a Reforma, não há mais oposição propriamente dita – de visão de
mundo rival – no universo do pensamento ocidental, e quase nenhuma em escala
mundial. (...) O neoliberalismo, como conjunto de princípios, reina inconteste no
globo” (Renewals, New Left Review, Londres, janeiro de
2000).
E agora, José? Permanecer no armário e aguardar o resultado das eleições de
2018? Quem garante que os eleitos ao Congresso não serão mais conservadores do
que os atuais parlamentares? Ainda que Lula escape das ciladas da Lava Jato e
vença a eleição presidencial, que tipo de alianças fará para assegurar a
governabilidade?
Nós, da esquerda, abandonamos o trabalho de base, a formação de militantes, o
enfrentamento ideológico. Sob os escombros do Muro de Berlim ficou soterrado
nosso arcabouço teórico. Nunca mais fomos os mesmos. Ao nos afastar da base
popular perdemos a vergonha de ser burgueses. Silenciamos quanto ao futuro
socialista. Passamos a acreditar que o capitalismo é humanizável, tigre
vulnerável a se transformar em gatinho doméstico. Arranha mas não devora...
Se o nosso arcabouço teórico ficou sob o Muro de Berlim, a razão primeira da
existência da esquerda se agigantou, mas nem sempre tivemos olhos para ver a
grande horda de excluídos e marginalizados. Porém, o pobretariado não figura em
nossas cogitações. Até gostamos de governar para ele, não de manter vínculos
orgânicos que deem consistência a uma proposta política transformadora.
O passado se foi e não sabemos
ainda como reinventar o futuro. Nossas ações pontuais, todas meritórias, não se
consubstanciam em uma proposta política com indícios de viabilizar “o outro
mundo possível”. Visto de hoje, ele parece impossível.
O que nós, progressistas (poupemos o termo esquerda), queremos de fato:
governar para o povo ou governar com o povo?
Apesar
dessa ausência de povo nas ruas e aparente inércia, algo de novo brota no seio
da esquerda brasileira: a Frente Povo Sem Medo (www.vamosmudar.org.br)
e a Frente Brasil Popular, além de tantas lutas assumidas por movimentos
indígenas, quilombolas, atingidos por barragens, mulheres, LBGTodos etc. E nas
redes digitais se fortalece a oposição ao governo Temer, obrigando-o a recuar
em relação a medidas de retrocesso social.
Sem
deixarmos de fazer autocrítica, há que guardar o pessimismo para dias melhores.
Frei Betto
é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco),
entre outros livros.
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