por Frei
Betto
Gustavo Gutiérrez completou 90 anos no último dia 8
de junho. Nos cinco continentes proliferam livros, teses, artigos e críticas
sobre a obra dele, bem como de outros teólogos como Leonardo Boff, Hugo
Assmann, João Batista Libânio, Juan Luis Segundo, José Míguez Bonino, Elsa
Támez e inúmeros outros, identificados com os princípios e a metodologia da
teologia da libertação.
A teologia da libertação ocupa uma posição de
prima-dona na teologia atual. Graças às "Instruções" (1984) do
Cardeal Ratzinger, tornou-se assunto de interesse até para, nada menos, que a
Academia de Ciências da União Soviética, como verifiquei ao visitar o país
integrando um grupo de teólogos brasileiros, em junho de 1987.
As duas "Instruções" emitidas pela
Congregação para a Doutrina da Fé, e os procedimentos contra o livro Igreja,
Carisma e Poder e seu autor, Leonardo Boff, levaram o debate teológico
para dentro dos muros sagrados das instituições eclesiásticas, e deram a ele
amplo espaço na mídia, nas universidades e nos movimentos políticos.
As obras dos teólogos provocam mais interesse que
as personalidades de seus autores. Este viés epistemológico tem suas vantagens:
desde que o trabalho seja rigoroso, segundo os critérios de seu campo
específico, não há necessidade de perturbar o autor, seguro em sua privacidade
conquistada. Entretanto, o divórcio entre autor e obra não tem sido sempre um
mero capricho da razão moderna. Algumas vezes tem servido como instrumento
ideológico – no sentido primitivo em que Marx usou a expressão “ideologia” -
precisamente para encobrir a contradição entre autor e obra. Basta recordar o
recente impacto das revelações de que Heidegger colaborou com o regime nazista.
No caso de autores mortos, as biografias são sempre
de grande interesse para aqueles que buscam um melhor entendimento do texto,
dentro do contexto. Quem hoje lê Althusser com a mesma atenção que suas obras
provocaram antes de 15 de novembro de 1980, quando o filósofo marxista
estrangulou sua esposa? Em contraste, a morte de Dietrich Bonhoeffer, num campo
de concentração nazista, deu às suas obras um novo caráter, assim como o
assassinato do arcebispo Oscar Romero garantiu ampla distribuição de seus
sermões.
Embora o alvo principal sejam sempre as obras que
produzem, a pessoa dos teólogos da libertação tem sempre suscitado uma polêmica
considerável. De qualquer modo, estamos acostumados a viver em situações de
conflito – seja a ocupação de terras que levou os irmãos Leonardo e Clodovis
Boff à prisão, em Petrópolis, em 4 de março de 1988, sejam as censuras e os
castigos impostos pelos que governam nossas Igrejas.
Certo desconforto é criado em alguns setores
teológicos do Primeiro Mundo exatamente por esse critério, que confere à
teologia da libertação um novo caráter: nela, o discurso teológico não pode ser
separado do compromisso pastoral. O teólogo da libertação não é um intelectual
de poltrona, confinado em bibliotecas e salas de leitura, dedicado a um rigor
acadêmico, protegido de conflitos atuais.
E não se escreve teologia da libertação sem se inserir
profundamente, porque o ponto de partida do teólogo da libertação não é sua
mente supostamente iluminada, mas a prática pastoral de comunidades cristãs
pobres, comprometidas com a causa da libertação popular.
Por essa razão, a teologia da libertação não existe
sem vínculo com sua fonte, a prática libertadora de comunidades cristãs
oprimidas do Terceiro Mundo. Gramsci nos ajuda a compreender esse novo status
da teologia com seu conceito de “intelectual orgânico”, que define a relação do
teólogo com o movimento popular. Isso explica por que a teologia da libertação
é representativa de grupos populares, através do apoio que recebe de uma imensa
rede de Comunidades Eclesiais de Base e um número incontável de mártires e
confessores, cuja vida eclesial e profecia são fontes para o pensamento e a
produção dos teólogos.
Uma
teologia "ilegítima"
Na América Latina, o fato de ser "filho
ilegítimo" não afeta necessariamente a imagem social de alguém. Somos
todos filhos e filhas de relacionamentos entre espanhóis e ameríndios,
portugueses e caboclos, brancos e negros, mestiços e mulatos. Nosso racismo é
só para efeito social: ele se dilui no calor dos trópicos, em que sexualidade é
poder e festa, barganha e submissão, fantasia e transgressão. Nesta parte do
mundo, a família é um conceito tão recente quanto a sua constituição. Para
parafrasear Santo Tomás de Aquino, aqui a vida extrapola o pensamento. Nem
mesmo a teologia escapa da árvore genealógica de raízes incertas e galhos
torcidos. Interrogar a teologia da libertação sobre seus ancestrais legítimos é
como perguntar a um indígena mexicano ou a um plantador de café colombiano
sobre a verdade histórica por detrás de sua tradição familiar.
Gustavo Gutiérrez pode, com razão, ser considerado
o pai da teologia da libertação, pois foi o primeiro a
publicar um livro com esse título, em 1971, pela espanhola Ediciones Sígueme.
Mas ele mesmo não nega a importância, para seu trabalho, da visita que fez ao
Brasil em 1969, quando teve contato com nossas Comunidades Eclesiais de Base e
experimentou, de perto, o drama do assassinato – ainda hoje impune – do assessor
da juventude de dom Helder Camara, o padre Henrique Pereira Neto, estrangulado
e baleado pela ditadura militar brasileira em Recife, em 26 de maio de 1969.
Gutiérrez dedicou sua "Teologia da libertação" a ele
e ao romancista peruano José María Arguedas. Apesar disso, não é possível negar
as raízes europeias provenientes do humanismo integral de Jacques Maritain, do
personalismo engajado de Mounier, do evolucionismo progressivo de Teilhard de
Chardin, da dogmática social de De Lubac, da teologia do laicado de Congar, da
teologia do desenvolvimento de Lebret, da teologia da revolução de Comblin, ou
da teologia política de Metz.
O Concílio Vaticano II incentivou as condições para que fosse cortado o cordão
umbilical que mantinha a teologia da América Latina dependente do útero da mãe
Europa. Ao se iniciar a década de 1960, a revolução cubana, o fracasso da
Aliança para o Progresso, a crise do modelo desenvolvimentista e o crescimento
de movimentos de esquerda não ligados aos partidos comunistas tradicionais,
foram alguns dos fatores que levaram os teólogos latino-americanos a enraizar o
pensamento no solo que pisavam. Não que fosse uma questão de procurar por
categorias que permitissem uma reinterpretação de fatos sociais e políticos. O
motor da teoria era a prática das comunidades populares cristãs, enraizada na
luta; conforme transformavam o mundo, também alteravam o modelo da Igreja.
Mudança social e eclesiogênesis estão, em última instância, ligadas.
A construção de um projeto político alternativo não deixa a Igreja intocada,
como se fosse uma comunidade de anjos pairando acima das contradições que
atravessam a trama da sociedade. O elemento novo era a consciência, alcançada
na vida em comum das Comunidades Eclesiais de Base, de que a Igreja não é
apenas o papa ou os bispos, mas o povo de Deus em marcha na história. E a
presença deste povo crente e oprimido nos movimentos sociais da América Latina
marcou a fé com um caráter crítico que fez nascer a teologia da
libertação.
Um
teólogo indígena
Na sétima conferência internacional da Associação
Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT), em Oaxtepec, México, em
dezembro de 1986, o teólogo negro norte-americano James Cone se queixou que a
teologia da libertação latino-americana era demasiado branca. O estranho é que
a seu lado estava Gustavo Gutiérrez, de aparência tipicamente indígena: pele
marrom, rosto redondo, baixo e atarracado, com olhos ligeiramente amendoados,
revelando sua ascendência quéchua. Em casa, seu pai falava esse idioma do
antigo império inca. Porém, mais que a língua e a aparência, Gutiérrez herdou o
estilo dos ameríndios andinos. E é isso que surpreende qualquer pessoa que o
conheça: ele combina – não sem alguns conflitos – a mente dotada de inteligência
rápida e racional, magisterial, que se expressa em uma linguagem construída
como as partes de um instrumento de precisão, e uma sensibilidade que desarma
todos os modelos da moderna racionalidade.
Nele coexistem o intelectual treinado em Louvain –
onde foi colega de Camilo Torres e defendeu uma tese baseada em Freud – e o
ameríndio do altiplano peruano. É isto que lhe permite entrar numa
sala de aula sem ser notado – como que deslizando sobre seus próprios pés – ou
visitar seu amigo Miguel d’Escoto sem que ninguém mais perceba sua presença em
Manágua. É como se ele pudesse viajar, não apenas nas estradas acessíveis a
viajantes urbanizados, mas também nas trilhas e picadas que só os habitantes da
selva conhecem. Esse dom ancestral lhe permite dominar uma nova língua, um novo
campo de conhecimento, ou passar através de Nova York, Paris ou Bonn, como um
ameríndio se esgueirando entre árvores e folhas, observando sem ser observado,
rápido como um pássaro e discreto como uma lhama.
Esta característica permitiu que ele trabalhasse no
rascunho do famoso Documento de Medellín, aprovado pela Conferência
Episcopal Latino-americana, em 1968 – um texto que se tornaria fundamental à
prática e teoria da Igreja dos pobres na América Latina.
Certa ocasião, Gutiérrez chegou a Roma exatamente
quando os bispos peruanos estavam discutindo os trabalhos dele com os mais
altos dignitários da Cúria. Quem pode jurar que o texto final, mais favorável a
ele que o rascunho original, não tenha sido redigido pela própria pena de
Gutiérrez?
Discreto como um capuchinho, ele se movimenta no
domínio político dos conflitos teológicos com toda a sutileza de um jesuíta.
Embora sua expressão às vezes revele aquela angústia metafísica característica
das pessoas para quem a linha estreita que separa a morte da vida é familiar,
nunca entra em pânico, e sua aguda intuição é capaz de apresentar soluções
imediatas a problemas complicados, como se tivesse meditado durante anos sobre
uma questão que acabou de surgir. Consegue ficar sentado durante horas num
banco de aeroporto, escrevendo um artigo ou escutando alguém, mordendo
nervosamente o tempo todo um palito com seus dentes fortes, ligeiramente
separados. Suas respostas são quase sempre ironicamente divertidas, como se estivesse
armando uma adivinhação.
Ao ministrar aulas e conferências, segue um padrão
rígido tão cuidadosamente montado que dá a impressão de ter ornamentado seu
texto. Suas piadas conferem às palavras um sabor todo seu, porque é sempre
capaz de manifestar aquela rara virtude que tanto o encanta: o humor. Seu senso
de humor lhe permite manter certa distância crítica de qualquer fato. Não se
permite ser traído pela emoção, porque sabe que nada de humano merece ser
levado demasiado a sério.
Convivi com Gustavo Gutiérrez em Puebla, em janeiro
e fevereiro de 1979, durante a Terceira Conferência Episcopal Latino-americana.
Naquela ocasião, o nome dele, do mesmo modo que o de outros teólogos da
libertação, havia sido excluído da lista de assessores oficiais. Não tinha
acesso direto ao local de encontro dos bispos, mas muitos prelados vinham até
ele em busca de ajuda, o que o obrigava a passar noites inteiras elaborando
rascunhos e propostas.
Estávamos todos alojados precariamente em
dois apartamentos sem mobília, que raramente tinham água e em cujos banheiros
faltava luz. Sobrevivíamos com algum maná caído do céu, porque não tínhamos
cozinha, e nos restaurantes da cidade seríamos presas fáceis da imprensa
internacional, sempre em busca de um teólogo para decifrar a linguagem
eclesiástica dos textos, ou para dar uma entrevista exclusiva que confirmasse a
natureza rebelde ou herética da teologia da libertação...
Depois de driblar todos os correspondentes
estrangeiros durante dias, na tarde do domingo, 4 de fevereiro de 1979,
Gutiérrez aceitou a sugestão do Centro Mexicano de Comunicación Social (Cencos)
de realizar uma coletiva de imprensa no hotel El Portal. Em seus comentários,
ele enfatizou que a teologia da libertação não tinha planejado começar por uma
reflexão sobre os pobres. Os próprios pobres, agentes da
transformação histórica, iniciaram essa reflexão teológica. O objetivo da
teologia da libertação é dar aos pobres o direito de pensar e se expressar
teologicamente. Quanto mais os jornalistas o pressionavam para deixar escapar
algo que pudesse soar como heresia, tanto mais Gutiérrez se mostrava fiel aos
pobres e à Igreja. Ele é mestre em reconciliar (conciliando) polos
aparentemente opostos, apresentando sínteses que nos incentivam a reinterpretar
a tradição e o mundo à nossa volta.
Encontrei-me com ele em diferentes ocasiões em seu
escritório – a “torre” de Rimac, bairro pobre de Lima. Decididamente era um dos
escritórios mais desordenados que jamais vi. Espalhados e misturados no chão
havia latas de Coca-Cola e livros do cardeal Ratzinger. Também garrafas em cima
de documentos papais, fios elétricos desgarrados perambulavam entre papéis
empoeirados. Não havia o menor indício de que um espanador tivesse estado lá
desde a chegada de Francisco Pizarro ao Peru.
Apesar disso, aquela confusão tinha lógica para
ele. Sabia exatamente onde encontrar cada coisa. E em meio àquele monte de
papéis ele devorava os livros que recebia. Quando sentia fome, comia alguma
refeição comum indefinida, junto com desempregados e subempregados.
Gutiérrez sempre preferiu ler a escrever. Tem seu
próprio método de leitura dinâmica, como se uma antena lhe indicasse a
qualidade do conteúdo de uma obra. Escrever, para ele, é um ato doloroso. E
quando escreve, admitir que alcançou a versão final é um sacrifício. Sempre
considera um texto provisório, a ser revisto e melhorado. Por isso, quase todas
as suas obras começaram como palestras mimeografadas. É muito
provável que seja o autor de mais obras não publicadas, conhecidas só por um
pequeno círculo de leitores, do que publicadas. Em geral, sequer assina os
textos mimeografados, que incluem uma excelente introdução às ideias de Marx e
Engels e de seu relacionamento com o cristianismo.
Em janeiro de 1985, na véspera da visita do Papa
João Paulo II a Lima, eu o encontrei na “torre” de Rimac, escrevendo uma série
de artigos ligados a esse importante evento eclesial. Enquanto conversávamos,
Gutiérrez tentava desembaraçar um longo fio de telefone, que mais parecia uma
bola de lã na boca de um gato brincalhão. Ele sempre mantém as mãos ocupadas
quando está nervoso, seja torcendo um elástico ou brincando com uma caneta
esferográfica. E naquele momento tinha razões mais que suficientes para estar
tenso, pois o cardeal Ratzinger anunciara, para setembro, uma resposta à defesa
que Leonardo Boff havia feito de seu livro Igreja, Carisma e Poder,
contra as críticas de Roma. O Natal tinha passado e a Cúria ainda permanecia em
silêncio. A segunda "Instrução" sobre a teologia da libertação,
baseada numa consulta aos bispos da América Latina, prometida para novembro ou
dezembro, também não tinha aparecido.
Talvez tivesse sido decidido que o papa deveria
fazer uma declaração mais oficial sobre a teologia da libertação no local. Nada
poderia ser mais oportuno que um pronunciamento durante uma visita à terra
natal do pai da teologia da libertação. Gutiérrez temia que o
papa dissesse algo que pudesse ser interpretado como uma condenação à sua
teologia. Seria desastroso. Apesar disso, estava pronto a deixar a “torre” que
o protegia do assédio da imprensa e aparecer no encontro do papa com sacerdotes
e leigos na praça. Mais uma vez parecia certo de que, devido às suas raízes
indígenas, como pessoa capaz de caminhar à noite na floresta sem despertar a
natureza de seu sono, sua presença seria discreta como a garoa que cobre os
telhados de Lima antes do amanhecer.
Admiradores
e inspiradores
A
caminho de Cuba, os irmãos Leonardo e Clodovis Boff e eu passamos por Lima, no
fim da tarde de 4 de setembro de 1985. Encontramos Gutiérrez na paróquia
operária onde, junto com o padre Jorge, diretor da Pastoral Operária de Lima, o
teólogo exercia seu ministério sacerdotal. Insistimos que fosse conosco para
Havana, porque Fidel Castro tinha demonstrado grande desejo de encontrá-lo.
Gutiérrez foi evasivo, objetando que, naquele mesmo momento, um grupo de bispos
peruanos, liderados por dom Durán Enriquez, estava preparando um livro didático
criticando seus escritos, o que significava que teria de se concentrar em
produzir uma espécie de defesa antecipada.
Algum tempo depois, Gutiérrez confirmou que não
tinha ido a Cuba em atenção a um pedido do padre Carlos Manuel de Céspedes,
então secretário geral da Conferência Episcopal Cubana, que fora seu colega em
Roma. O sacerdote cubano tinha medo que a presença do teólogo peruano em Cuba
fosse explorada politicamente.
Na
noite seguinte ao nosso encontro em Lima, os irmãos Leonardo e Clodovis Boff, e
eu, nos encontramos com Fidel Castro em Havana. Entregamos a ele a carta que o
teólogo lhe mandara. Ao terminar, Fidel comentou que acabara de ler “Teologia
da Libertação” e se disse impressionado com sua base científica e seu impacto
ético. Mencionou especialmente a honestidade com que Gutiérrez trata a questão
da luta de classes e a dimensão da pobreza. E acrescentou, com ênfase:
“Precisamos distribuir livros como este ao movimento comunista. Nosso povo não
sabe nada sobre isso. Para vocês é mais difícil escrever um livro como este, do
que para nós produzir um texto sobre marxismo." Alguns dias depois, Fidel
declarou, na presença de dom Pedro Casaldáliga, do Brasil, de visita a Cuba,
que “a teologia da libertação é mais importante que o marxismo para a revolução
na América Latina”.
Mas
quem pensa que a política fala mais alto no coração de Gustavo Gutiérrez está
enganado. Ele é acima de tudo um místico. Seus livros mais conhecidos, O
Deus da Vida, Sobre Jó: Falar de Deus, O Sofrimento
do Inocente e Beber de nosso próprio poço,são
fundamentalmente espirituais, visando a alimentar a vida de fé e oração de
cristãos comprometidos com a luta popular.
Para Gutiérrez, a teologia é secundária. O essencial é fazer a vontade de Deus
na ação libertadora. E sua aguda visão teológica capta a presença do Senhor,
solidário lá onde Ele parece estar mais ausente, no sofrimento dos pobres. Esse
sofrimento permeia a vida do próprio Gustavo Gutiérrez, pois sua saúde delicada
exige cuidados constantes. Mas ele não se queixa. Prefere gritar pelos pobres.
Certa
ocasião, passei um dia inteiro com ele no Curso de Verão, em Lima, ao qual
acorriam milhares de militantes de comunidades cristãs de base em busca de
fundamentação teológica. Percebi que ele estava triste, embora tivesse apresentado
seu curso com a habitual vivacidade. Havia uma sombra naquele rosto que se
ilumina, feliz, quando rodeado de pessoas simples, pobres, dedicadas à utopia
do Reino. Conversamos, e nem uma palavra de autopiedade saiu de seus lábios. Só
mais tarde fiquei sabendo que sua mãe havia morrido naquele dia.
O
livro sobre Jó é uma autobiografia disfarçada de Gustavo Gutiérrez. De suas
páginas surge a profunda convicção de que toda a teologia da libertação deriva
do esforço de dar sentido ao sofrimento humano. Na busca desse sentido, o
teólogo sabe que, como diz Clodovis Boff, tudo é política, mas a política não é
tudo. A solidariedade com o pobre não se esgota na causa da justiça; ela nos
conduz à esfera da gratuidade, onde o despojamento espiritual abre o caminho
para a comunhão com Deus.
Assim como na América Latina a vida de fé não pode
ser separada das exigências da política, também o projeto revolucionário
deveria encontrar na mística cristã o modelo para a formação de novos homens e
mulheres. Consequentemente, a teologia da libertação só pode ser acusada de
desprezar a dimensão espiritual por alguém que não conheça a longa lista de
obras que nasceram da contemplação e das mãos de Segundo Galilea, João Batista
Libanio, Elsa Támez, Carlos Mesters, Arturo Paoli, Raúl Vidales, Pablo Richard
ou Leonardo Boff.
Os
estigmas divinos queimam as entranhas de Gustavo Gutiérrez. É impossível
apreender a profundidade total de sua inspiração intelectual, seu papel
profético e sua alma mística sem conhecer aqueles três peruanos que estão na
raiz de sua genialidade: José Carlos Mariátegui, César Vallejo e, acima de
tudo, José María Arguedas.
Do
comunista Mariátegui, autor do clássico Siete Ensayos Peruanos,
Gutiérrez aprendeu a técnica de canibalismo cultural necessária para
latino-americanizar toda a bagagem teórica de seus anos de estudos em Roma,
Bélgica, França e Alemanha. Do poeta César Vallejo, autor de Trilce,
poesia tão importante para a literatura moderna quanto Ulisses,
herdou o lamento nostálgico da criatura sofredora diante do silêncio do
Criador: “Meu Deus, se Você tivesse sido humano hoje, Você seria capaz de ser
Deus” (Los dados eternos). “Nasci num dia em que Deus estava doente” (Espergesia).
No
entanto, a influência maior foi do novelista José María Arguedas, de quem
Gutiérrez era amigo, e a quem rende tributo em muitas de suas palestras e
escritos. É interessante que ele tenha escolhido, como epígrafe de sua
obra Teologia da Libertação, uma página do livro Todas
las Sangres deste autor quéchua, especificamente aquela em que o
sacristão indígena de Lahuaymarca diz ao sacerdote: "Seu Deus não é o
mesmo. Ele faz com que pessoas sofram sem consolo..."
“Será
que Deus poderia estar no coração daqueles que dilaceraram o corpo do inocente
Mestre Bellido? Será que Deus poderia estar no corpo dos engenheiros que estão
matando La Esmeralda? No coração das autoridades que tiraram de seus donos
aquele campo de milho onde, em cada colheita, uma virgem costumava brincar com
seu filhinho pequeno?”
Em
novembro de 1981, encontrei Gustavo Gutiérrez em Manágua. Lá, entre discussões
teológicas com os dirigentes sandinistas, numa tentativa de ajudá-los a
entender as diferentes posições dos cristãos quanto à revolução, nasceu aquilo
que mais tarde se tornaria seu livro sobre Jó. Nele levanta a questão
fundamental e pergunta a si mesmo: Como podemos falar sobre Deus no meio de
tanta opressão? Se queremos fazer teologia, falar sobre Deus,
disse ele, precisamos primeiro ficar em silêncio diante de Deus. Desse
silêncio, que envolve os corações dos pobres, nasce a sabedoria. E precisamos
repetir com Jó, em meio a tantas cruzes latino-americanas e profunda sede de
amor: “Antes eu te conhecia só por ouvir dizer; mas, agora, meus olhos te viram."
Tudo em Gustavo Gutiérrez, sua obra e sua vida, converge para essa visão.
Hoje,
Gutiérrez é meu confrade na Ordem Dominicana.
Frei
Betto é assessor de movimentos pastorais e sociais, autor de “Fidel e a
Religião” (Companhia das Letras), entre outros livros.
http://www.freibetto.org/>
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