Por Leonardo Boff
Entre os dias 10-13 de julho realizou-se em Belo
Horizonte um congresso internacional organizado pela Sociedade de Teologia e
Ciências da Religião (SOTER) em torno dos temas: Religião, Ética e
Política. As exposições foram de grande atualidade e de qualidade superior.
Refiro-me apenas à discussão acerca do Eclipse da Ética que me coube
introduzir.
A meu ver dois fatores atingiram o coração da
ética: o processo de globalização e a mercantilização da sociedade.
A globalização mostrou os vários tipos de ética,
consoante as diferenças culturais. Relativizou-se a ética ocidental, uma entre
tantas. As grandes culturas do Oriente e as dos povos originários revelaram que
podemos ser éticos de forma muito diferente.
Por exemplo, a cultura maia coloca tudo centrado no
coração, já que todas as coisas nasceram do amor de dois grandes corações, do
Céu e da Terra. O ideal ético é criar em todas as pessoas corações sensíveis,
justos, transparentes e verdadeiros. Ou a ética do “bien vivir y convivir” dos
andinos assentada no equilíbrio com todas as coisas, entre os humanos, com a
natureza e com o universo.
Tal pluralidade de caminhos éticos teve como
consequência, uma relativização generalidade. Sabemos que a lei e a ordem,
valores da prática ética fundamental, são os pré-requisitos para qualquer
civilização em qualquer parte do mundo. O que observamos é que a humanidade
está cedendo diante da barbárie rumo a uma verdadeira idade das trevas mundial,
tal é o descalabro ético que estamos vendo.
Pouco antes de morrer em 2017 advertia o pensador
Sigmund Bauman:”ou a humanidade se dá as mãos para juntos nos salvarmos ou
então engrossaremos o cortejo daqueles que caminham rumo ao abismo”. Qual é a
ética que nos poderá orientar como humanidade vivendo na Casa Comum?
O segundo grande empecilho à ética é aquilo que
Karl Polaniy chamava já em 1944 de “A Grande Transformação”. É o
fenômeno da passagem de uma economia de mercado para uma sociedade
puramente de mercado. Tudo se transforma em mercadoria, coisa já
prevista por Karl Marx em seu texto A miséria da Filosofia de
1848, quando se referia ao tempo em que as coisas mais sagradas como a verdade
e a consciência seriam levadas ao mercado; seria “tempo da grande corrupção
e da venalidade universal”. Pois vivemos este tempo. A economia
especialmente a especulativa dita os rumos da política e da sociedade como um
todo. A competição é sua marca registrada e a solidariedade praticamente
desapareceu.
O que é o ideal ético deste tipo de sociedade? É a
capacidade de acumulação ilimitada e de consumo sem peias, gerando uma grande
divisão entre um pequeníssimo grupo que controla grande parte da economia e as
maiorias excluídas e mergulhadas na fome e na miséria. Aqui se
revelam traços de barbárie e crueldade como poucas vezes na história.
Precisamos refundar uma ética que se enraíze
naquilo que é específico nosso, enquanto humanos e que, por isso, seja
universal e possa ser assumida por todos.
Estimo que que em primeiríssimo lugar é a ética
do cuidado que segundo a fabula 220 do escravo Higino e bem
interpretada por Martin Heidegger em Ser e Tempo constitui o
substrato ontológico do ser humano, aquele conjunto de fatores sem os quais
jamais surgiria o ser humano e outros seres vivos. Pelo fato de o cuidado ser
da essência do humano, todos podem vive-lo e dar-lhe formas concretas,
consoantes suas culturas.. O cuidado pressupõe uma relação amigável e amorosa
para com a realidade, da mão estendida para a solidariedade e não do punho cerrado
para a dominação. No centro do cuidado está a vida. A civilização deverá ser
bio-centrada.
Outro dado de nossa essência humana é solidariedade e
a ética que daí se deriva. Sabemos hoje pelo bio-antropologia que foi a
solidariedade de nossos ancestrais antropoides que permitiu dar o salto da
animalidade para a humanidade. Buscavam os alimentos e os consumiam
solidariamente. Todos vivemos porque existiu e existe um mínimo de
solidariedade, começando pela família. O que foi fundador ontem, continua sendo-o
ainda hoje.
Outro caminho ético, ligado à nossa estrita
humanidade é a ética da responsabilidade universal, Ou assumimos
juntos responsavelmente o destino de nossa Casa Comum ou então percorreremos um
caminho sem retorno. Somos responsáveis pela sustentabilidade de Gaia e de seus
ecossistemas para que possamos continuar a viver junto com toda a comunidade de
vida.
O filosofo Hans Jonas que, por primeiro, elaborou “O
Princípio Responsabilidade”, agregou a ele a importância do medo
coletivo. Quando este surge e os humanos começam a dar-se conta de que
podem conhecer um fim trágico e até de desaparecer como espécie, irrompe um
medo ancestral que os leva a uma ética de sobrevivência. O pressuposto
inconsciente é que o valor da vida está acima de qualquer outro valor cultural,
religioso ou econômico.
Por fim importa resgatar a ética da justiça para
todos. A justiça é o direito mínimo que tributamos ao outro, de que possa
continuar a existir e dando-lhe o que lhe cabe como pessoa. Especialmente as
instituições devem ser Justas e equitativas para evitar os privilégios e as
exclusões sociais que tantas vítimas produzem, particularmente nosso país, um
dos mais desiguais, vale dizer, mais injustos do mundo. Daí se explica o ódio e
as discriminações que dilaceram a sociedade, vindos não do povo mas daquelas
elites endinheiradas que sempre viveram do privilégio. Atualmente vivemos sob
um regime de exceção, no qual tanto a Constituição e as leis são pisoteadas ou
mediante o Lawfare (a interpretação distorcida da lei que o
juiz pratica para prejudicar o acusado)
A justiça não vale apenas entre os humanos mas
também para com a natureza e a Terra que são portadores de direitos e por isso
devem ser incluídos em nosso conceito de democracia sócio-ecológica.
Estes são alguns parâmetros mínimos para uma ética,
válida para cada povo e para a humanidade, reunida na Casa Comum. Devemos
incorporar uma ética da sobriedade compartida para lograr o que dizia Xi
Jinping, chefe supremo da China “uma sociedade moderadamente abastecida”.Isto
significa um ideal mínimo e alcancável. Caso contrario poderemos conhecer
um armagedon social e ecológico.
Leonardo Boff escreveu: “Como cuidar da Casa
Comum, Vozes 2018.
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