Maria Clara
Bingemer
Para
quem anda descrente da humanidade, o recente episódio do resgate de doze
adolescentes tailandeses de uma caverna inundada foi uma bela
surpresa. Uma onda de solidariedade se fez presente de um ponto a
outro do planeta.
Uma corrente de desejos e sentimentos
positivos apontava de todas as partes na direção da caverna onde os meninos e
seu treinador estavam confinados. O heroísmo de tantos, que vieram de outros
países para ajudar no salvamento, foi admirável. Em época tão conturbada
como a que vivemos, trata-se de um autêntico reencontro da humanidade consigo
mesma, como disse a acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira em recente
artigo.
Os doze meninos e seu treinador
permaneceram na caverna onde as fortes inundações os surpreenderam isolados por
longos dias com comida escassa e em condições muito precárias. Quando foram
encontrados, o mundo inteiro ficou impressionado por estarem em boas condições
físicas naquela situação limite que viviam. Mas, para além disso,
chamaram mais ainda a atenção de todos pela calma e equilíbrio que demonstraram
durante todo o processo de encontro, resgate e salvamento.
De um grupo de adolescentes que
formavam um time de futebol seria normal esperar medo, pânico e agitação ao se
perceberem confinados em uma caverna escura por vários dias, sem saber como
fazer para sair dali e salvar-se. A insegurança,
aliada àescassez de recursos alimentícios e àexiguidade do espaço
seco em meio àcaverna alagada, tudo contribuía para que os meninos estivessem
abalados e vulneráveis.
No entanto, o que se viu foi um grupo
de crianças calmas, vivendo a dificuldade pela qual passavam com um sorriso nos
lábios e muita serenidade. Nenhum chorava ou tinha qualquer reação de angústia
e aflição. E assim permaneceram ao longo de toda a operação de resgate com
muita expectativas e adiamentos sem fim.
Qual o segredo dessa paz, desse
equilíbrio? Que espírito adejava por aquela caverna a ponto de
conseguir tranquilizar desta maneira doze crianças em perigo? Cremos que a
resposta se encontra em algo que acompanha o ser humano desde suas origens e
que ao longo da história tomou formas e configurações diversas e fascinantes: a
espiritualidade. Ou seja, a capacidade do ser humano de elevar-se
além do sensorial e do racional, e experimentar a transcendência.
No caso do time dos “Javalis
Selvagens” que comoveu o mundo, parece que a fonte imediata daquele
enfrentamento admirável de uma situação tão adversa encontra sua raiz na pessoa
do treinador Ekapol Chanthawong. Foi ele quem os levouà excursão que
acabaria isolando-os dentro da caverna. Mas foi igualmente ele que
os liderou no processo de resistência que lhes permitiu conservar a vida e as
energias, de modo que pudessem ser salvos e reconduzidos a suas famílias.
O treinador, antes de ocupar-se de
times de futebol, foi monge budista e viveu desde os doze anos em um
mosteiro. Dali saiu para cuidar de sua avódoente. Ali também
aprendeu as técnicas e o método da meditação budista durante uma
década. E quando saiu, levou consigo a espiritualidade que havia
vivido no mosteiro. O mosteiro ficou gravado em seu interior e o faz
atéhoje manter contato com a comunidade que ali reside. Segundo o abade do
mosteiro, Chanthawong continua meditando regularmente.
Parece que, ao constatar a situação
de isolamento em que se encontrava junto com os meninos, passou a ensinar-lhes
a meditar. O objetivo era mantê-los calmos e preservar suas energias
enquanto ali estivessem. Assim se passaram duas semanas. Cada um
fazia uma hora de meditação ao dia, e isso os ajudou a resistir durante todo o
tempo em que estiveram na caverna até serem encontrados e
resgatados.
Além de ajudar os meninos dando-lhes
o que tem de melhor – sua espiritualidade – o treinador deu-lhes vida concreta
retirada de sua própria vida. Jejuou e não se alimentou durante os dias de
reclusão, a fim de que sobrasse mais dos poucos alimentos de que dispunha o
grupo para os meninos. E foi oúltimo a ser libertado e ver novamente
a luz do sol. Certamente seus longos anos de ascese no mosteiro foram
fundamentais nessa atitude e nessa prática.
Neste momento, quando ainda vivemos,
juntamente com a euforia da Copa do Mundo, o alívio e a alegria de ver a todos
os personagens da caverna finalmente sãos e salvos, somos levados a refletir
sobre a importância da espiritualidade para nossas vidas.
A rica, admirável e milenar tradição
budista pretende conduzir as pessoas em direção à iluminação
e à paz de espírito. Poderia ter sido outra tradição. O
importante neste caso é perceber a grandeza de nossa condição
humana. Tão precária e frágil a ponto de contar com forças limitadas
para sobreviver em situações difíceis. Mas tão incrivelmente bela e
elevada de forma a enfrentar grandes dificuldades graças ao espírito que anima
uma corporeidade finita e mortal.
O time dos Javalis Selvagens e seu
treinador nos sinalizam algo da maior importância. É preciso
cultivar o espírito, investir na vida espiritual, seja em que tradição
religiosa for, ou mesmo fora de qualquer uma. Certamente faz a vida
mais digna desse nome. E pode ajudar-nos muito quando nos virmos
isolados em alguma caverna escura e inundada sem vislumbrar saídas
evidentes.
Maria Clara Bingemer é teóloga,
professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de de “Simone Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
Copyright
2018 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste
artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem
autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário