Por Marcelo
Barros
Somos todos
filhos e filhas do cuidado. Ninguém sobrevive sem ter, ao menos nos primeiros
dias, uma pessoa que lhe garanta os cuidados necessários. Mesmo depois, a
criança continua precisando de uma mãe ou/e pai. Na Índia, do século V antes de
nossa era, Sidharta Guatama, o Buda, afirmava: "Todos/as somos chamados a olhar a
outra pessoa como uma mãe carinhosa olha o filho que está em seu útero".
Desde os
tempos antigos até filósofos do século XX como Heidegger, compreenderam: o que mais
define o ser humano não é a capacidade de pensar ("O ser humano é um animal racional). Nem é a possibilidade de criar.
O ser humano se define, principalmente, pela
vocação de cuidar.
Nos anos
60, o psicólogo Carl Rogers afirmava que nascemos indivíduos e, somente através
da relação com os outros, nos tornamos pessoas. O que nos torna pessoas é a
relação do cuidado, recebido e compartilhado.. O outro do qual devemos cuidar é
todo ser humano. No entanto, é também a Terra, a água e todos os seres vivos,
com os quais formamos o que Leonardo Boff denomina "a comunidade da vida".
É urgente
lembrar isso para compreender melhor as raízes da crise social e política em
que estamos mergulhados. A sociedade contemporânea se desenvolveu muito no
plano técnico e científico. Aprimorou a comunicação virtual e isso é
maravilhoso. No entanto, nem o conforto proporcionado pela riqueza, nem as
facilidades obtidas pelo computador e celular preenchem o imenso vazio que as
pessoas sentem.
No século
IV, Santo Agostinho orava a Deus: "O
coração humano nunca se saciará enquanto não repousar em Ti". No
entanto, atualmente, parece que a maioria das pessoas não se mostra tão
interessada nessa relação. Provavelmente, um dos motivos foi que, no decorrer
da história, muitas vezes, as religiões apresentaram a Deus como um ser
distante da nossa vida. Falaram de uma divindade todo-poderosa. Ensinaram que Deus é amigo de
seus amigos e cruel com as pessoas que não o conhecem. Essas imagens mesquinhas
de Deus afastaram dele grande porção da humanidade. E essa continua com fome e
sede de amor.
Todo mundo
quer ser feliz, mas procura a felicidade no consumo e na ambição do possuir. As
pessoas correm atrás do lucro, da eficiência e da produtividade. Trocam a
emoção genuína do bem-querer pelas conveniências sociais de boas maneiras.
Preferem tirar fotografias e selfies aqui e ali, no lugar de conviver e curtir
a natureza. No plano da Política, o fato de oito pessoas possuírem o
equivalente à metade de toda a humanidade é considerado legal. Não se considera
ilegal que governos europeus deixem migrantes africanos se afogarem no Mar
Mediterrâneo. De junho a julho, agora, calculam-se em 600 pessoas afogadas pela
rejeição dos governos europeus em resgatá-las vivas do mar. Nos Estados Unidos
e no mundo, nesses meses, o presidente Trump jogou 3900 crianças
latino-americanas, menores de dez anos, separados de seus pais, em campos de
concentração. No mundo inteiro, isso provocou um sentimento de indignação, mas
ninguém disse que esse louco e criminoso fere as leis vigentes.
O sistema
dominante exilou a ética das discussões sobre o viver/l. Ao desprezar a ética
como base da organização social, de certa forma, a sociedade humana deserta da
própria possibilidade de vida tanto em comum, como mesmo no plano da
sobrevivência pessoal e ameaça a continuidade da vida no planeta.
Quem crê em
Deus sabe que o seu Espírito se manifesta em todo ato de cuidado e solidariedade.
Muitas vezes, as Igrejas têm a pretensão de dizer aos cristãos e ao mundo como
devem se comportar na totalidade de suas vidas. No entanto, elas fazem isso no
plano da moral pessoal. No âmbito social e político, os que se dizem crentes se
preocupam mais com a moralidade das relações pessoais do que com a ética da
justiça e da paz. Atualmente, o papa Francisco tem insistido: a ética de Jesus se
fundamenta no amor e na misericórdia. Na época de Jesus, muitos dos que
representavam a religião usavam Deus e a
Bíblia para legitimar o seu poder e seus interesses sociais e econômicos. No
Congresso Nacional, a chamada "bancada
evangélica" se associa ao que há de pior na política brasileira para
defender seus interesses. Lutam por pautas contra os direitos das minorias e a
favor de liberar a venda de armas no Brasil. E vários deles se sentem com
direito de entrar em negócios escusos, desde que o dinheiro da falcatrua seja
colocado em uma empresa que tenha por nome Jesus.com
Sobre esses
fariseus e escribas de hoje, católicos e evangélicos, o evangelho repete a
palavra de Jesus: "esse povo me
honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim" (Mt 15, 8).
E sem excluir os próprios discípulos, chegou a afirmar: "Em verdade vos digo, os publicanos e as
prostitutas chegarão antes de vocês no reino dos céus" (Mt 21, 31). As
sociedades indígenas da América Latina propõem como critério de organização
social o Bem-viver. Esse paradigma parte do cuidado na relação interpessoal, na
organização social e na busca da comunhão com o universo. É um caminho de
espiritualidade ecumênica no qual contemplamos e testemunhamos o Espírito que,
como diz o livro bíblico da Sabedoria, “enche
todo o universo e está presente em toda relação humana” (Sb 1, 7).
Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor
de 26 livros dos quais o mais recente é "O Espírito vem pelas Águas",
Ed. Rede-Loyola, 2003. Email: mostecum@cultura.com.
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