Por Leonardo Boff
Nos
últimos tempos temos dedicado nossas reflexões quase que exclusivamente à
questão do Covid-19, de seu contexto que é a superexploração da Terra viva e da
natureza pelo capitalismo globalizado, incluiundo a China. Elas se
defenderam enviando-nos uma gama de vírus (zika, ebola, febre aviária e suína e
outros) e agora este que atacou a humanidade inteira, poupando outros seres
vivos. A corrida desenfreada da acumulação desigual e todos tivemos que parar,
entrar no isolamento social, evitar conglomerações e usar as incômodas
máscaras. Acolhemos estas limitações em solidariedade uns com os outros e com
os sofredores do mundo inteiro.
Essa
situação severa enseja a ocasião de não apenas pensarmos no que virá após a
pandemia mas de voltarmo-nos sobre nós mesmos, sobre as questões cotidianas
como a construção continuada de nossa identidade e a moldagem de nosso sentido
de ser. É uma tarefa nunca terminada mesmo sob o confinamento social. Entre
muitas, duas provocações estão sempre presentes e temos que dar conta delas: a
aceitação dos próprios limites e a capacidade de desapegar-se.
Todos vivemos dentro de um arranjo existencial que, por sua própria natureza, é
limitado em possibilidades e nos impõe inúmeras barreiras: de profissão, de
inteligência, de saúde, de economia, de tempo e outras. Há sempre um
descompasso entre o desejo e sua realização. E às vezes nos sentimos impotentes
face a dados que não podemos mudar como a presença de uma pessoa com seus
altos e baixos ou de um doente terminal. Temos que nos resignar face a esta
limitação intransferível.
Nem por
isso precisamos viver tristes ou impedidos de crescer. Há que ser criativamente
resignados. A invés de crescer para fora, podemos crescer para dentro na medida
em que criamos um centro onde as coisas se unificam e descobrimos como de
tudo podemos aprender. Bem dizia a sabedoria oriental:”se alguém sente
profundamente o outro, este o perceberá mesmo que esteja a milhares de
quilômetros de distância”. Se te modificares em teu centro, nascerá em ti uma
fonte de luz que irradiará para os outros.
A outra tarefa consite na busca da auto-realização. Esta, essencialmente, é a
capacidade de desapegar-se. O zen-budismo coloca como teste de maturidade
pessoal e de liberdade interior a capacidade de desapegar-se e de despedir-se.
Se observamos bem, o desapego pertence à lógica da vida: despedimo-nos do
ventre materno, em seguida, da meninice, da juventude, da escola, da casa
paterna, dos parentes e das pessoas amigas. Na idade adulta despedimo-nos de trabalhos,
de profissões, do vigor do corpo e da lucidez da mente que irreversivelmente
vão diminuindo até cessarem e aí nos despedirmos da própria vida. Nestas
despedidas temos crescido em nossa identidade mas à custa de deixarmos um pouco
de nós mesmos para trás.
Qual é o sentido deste lento despedir-se do mundo? Mera fatalidade irreformável
da lei universal da entropia? Essa dimensão é irrecusável. Mas será que ela não
guarda um sentido existencial, a ser buscado pelo espírito? Se, na verdade,
comparecemos como um projeto infinito e um vazio abissal que clama por
plenitude, será que esse desapegar-se não significa criar as condições para que
um Maior nos venha preencher? Não seria o Supremo Ser, feito de amor e de misericórdia,
que nos vai tirando tudo para que possamos ganhar tudo, no além vida, quando
nossa busca finalmente descansará, como o cor inquietum de
Santo Agostinho?
Ao perder, ganhamos e ao esvaziarmo-nos ficamos plenos. Dizem por aí que esta
foi a trajetória de Jesus, de Buda, de Francisco de Assis, de Gandhi, de
Madre Teresa, de Irmã Dulce e, creio eu, também do Papa Francisco, o maior dos
humanos de hoje.
Talvez uma estória dos mestres espirituais antigos nos esclareça o sentido da
perda que produz um ganho.
“Era
uma vez um boneco de sal. Após peregrinar por terras áridas chegou a descobrir
o mar que nunca vira antes e por isso não conseguia compreendê-lo. Perguntou o
boneco de sal:” Quem és tu? E o mar respondeu:”eu sou o mar”. Tornou o boneco
de sal: “Mas que é o mar?” E o mar respondeu:” Sou eu”. “Não entendo”, disse o
boneco de sal. “Mas gostaria muito de compreender-te; como faço”? O mar simplesmente
respondeu: “toca-me”.
Então o
boneco de sal, timidamente, tocou o mar com a ponta dos dedos do pé. Percebeu
que o mar começou a ser compreensível. Mas logo se deu conta de que haviam
desaparecido as pontas dos pés. “Ó mar, veja o que fizeste comigo”? E o mar
respondeu:”Tu deste alguma coisa de ti e eu te dei compreensão; tens que te
dares todo para me compreender todo”.
E o
boneco de sal começou a entrar lentamente mar adentro, devagar e solene, como
quem vai fazer a coisa mais importante de sua vida. E na medida que ia
entrando, ia também se diluindo e compreendendo cada vez mais o mar. E o
boneco continuava perguntando: “que é o mar”. Até que uma onda o cobriu
totalmente. Pode ainda dizer, no último momento, antes de diluir-se no
mar: “Sou eu”.
Desapegou-se de tudo e ganhou tudo: o verdadeiro eu.
Leonardo
Boff é autor de Tempo de Transcendência, 2009
e Saudade de Deus(2019) ambos pela Editora Vozes.
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