por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Francisco de Assis e Inácio de Loyola são dois santos bem diferentes, e geraram duas espiritualidades igualmente diversas. Um é medieval, o outro moderno. Ambos são contemplativos, mas o segundo não pode conceber a contemplação sem uma prática com algum nível de eficácia. E assim encarna o espírito moderno. O primeiro contempla a criação, se irmana com ela e é poesia pura ele mesmo. Porém, em ambos se pode encontrar o traço do amor pela criação inseparável do amor ao Criador.
O mundo, criação de Deus, é para Inácio o
lugar onde ele pode perceber este Deus que o tocou de maneira candente e
inesquecível quando do seu ferimento em Pamplona e convalescença em Loyola. O
movimento trinitário de descida do Deus trino ao seio da criação, transfigurado
por sua presença em todas as coisas e de retorno dessas coisas à vida imanente,
íntima desse Deus, marca não só a vida de Inácio como também sua obra.
Já nos primeiros tempos de sua conversão, Inácio
viu Jesus Cristo como inseparável da comunhão trinitária com o Pai, que o envia
ao seio da criação como mediador e salvador para, desde ali, redimir todas as
coisas. Teve aí a visão iluminadora conhecida como "a ilustração do
Cardoner" por haver-se dado às margens do rio que tem este nome. Inácio
sentiu que seus olhos se clareavam, fazendo-o ver todas as coisas novas. Para
ele, as criaturas se tornam transparentes, diáfanas, e "todas as coisas"
cantam a glória de Deus. O mundo é a morada de Deus, o lugar onde o Senhor
amorosamente se deixa encontrar.
Mas esta visão inaciana da Criação e o gozo da
contemplação dAquele que é sua origem e fim não é idílica, de um universo
perfeito, pronto e acabado. É, ao contrário, a lúcida visão de um mundo que,
embora saído das mãos do Criador e por Ele habitado, carrega em si a marca
mortal e destruidora do pecado. Experimentando profundamente o gozo de
"ser criado", de ser parte intrínseca desta Criação saída das mãos de
Deus, o cavaleiro de Loyola experimenta, como consequência deste "ser
criado" o dever de "louvar, reverenciar e servir a esse Deus
Criador”.
Percebe que “as outras coisas sobre a face da
terra” são criadas para ele e que através delas deve reverenciar e servir ao
Criador, buscando sempre o maior e melhor meio de realizar esse desejo. E,
assim como a Trindade que se revela a Inácio, se mostra primariamente em seu
movimento descendente, transfigurando "todas as coisas", assim também
a experiência que Inácio faz deste Deus Trinitário não acontece a não ser em
"todas as coisas", ou seja, no mundo. O lugar de Deus, tal como é
percebido por Inácio, não é outro senão o mundo, o lugar onde a graça divina se
mistura com as "coisas criadas", inclusive com o pecado humano e que
o próprio Deus vem resgatar e reconduzir à sua primitiva origem, no seio da
comunhão trinitária.
Já desde Loyola, nos primórdios de sua conversão, o
elemento cósmico, do mundo criado, da natureza, está incorporado na sua oração,
na sua antropologia, na sua experiência do divino e no inflamado amor que
começa a crescer e alastrar-se em seu interior com relação àquele de quem
provém essas maravilhas. Relatando ao padre Luís Gonçalves da Câmara o tempo de
sua convalescença em Loyola, logo após o ferimento de Pamplona, sublinha com
especial ênfase que "a maior consolação que descobrira era contemplar o
céu e as estrelas. Fazia-o muitas vezes e por muito tempo, porque com isto
sentia em si um muito grande esforço para servir a Nosso Senhor."
Deus é aquele
que não se identifica com as coisas, uma vez que nelas permanece a ambiguidade
de pecado e graça, de bem e mal. Mas é, igualmente e sobretudo, aquele que
habita nas coisas: nos elementos, dando-lhes o ser; nas plantas o
vegeta;, nos animais, o sentir; nos homens, o entender; e, assim, em mim,
dando-me ser, vida, sentidos e fazendo-me entender. E também como
faz de mim seu templo, sendo eu criado à semelhança e imagem de sua divina
majestade.
A visão de Inácio também desvela um Deus que
trabalha, que labuta em todas as coisas, que luta quando as galáxias se movem.
O movimento incessante da vida é percebido como indicativo de sua sagrada
fadiga e todas as coisas são recapituladas em seus trabalhos redentores. Deus
trabalha dentro do universo, dentro das coisas. Trabalha também e sobretudo
dentro do ser humano, pelos movimentos de seu Espírito. Torna-se imperativo,
portanto, que o ser humano descubra e possa ler e interpretar esses
"trabalhos", este constante e apaixonado "serviço" divino,
que identifique e misture suas eleições, ações e paixões com os trabalhos de
Deus, a fim de poder "em tudo e por tudo amar e servir Sua Divina
Majestade."
Quando celebramos os cinco anos da encíclica
“Laudato Si”, do Papa Francisco, sobre o cuidado da criação, Santo Inácio
ensina qual deve ser nossa atitude: reverenciar, amar e cuidar de todas as
coisas criadas, pois nela palpita a vida do próprio Criador e a elas estamos
interligados por uma vida que é dom de Deus para todos os seres vivos que
habitam esse mundo.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros
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