Padre Fabio Potiguar Santos
“Capricha bem, porque hoje vem um
convidado do céu almoçar com a gente”.
Estava de férias na Bolívia e fiz muitas visitas aquela gente querida que me
chamava de “padrezito”. Uma família em particular estreitou laços. Num domingo
passei o dia todo como os Mansillas. Fabrício,
na época com quatro anos, assistia como protagonista a gente falar de
Deus, partilhar em família o evangelho,
dar benção neles e na casa... alguns
dias depois voltei e, ele saiu com essa para a cozinheira: “Capricha bem, porque hoje vem um convidado do céu almoçar com a
gente”.
Esse
menino percebia por trás da minha humanidade algo de sagrado e divino: um
convidado do céu. Um homem como os pés bem no chão, mas também com asas debaixo
dos braços e sapatos com pó de nuvens. Assim veem as crianças, seja o pajé na
tribo, o pastor no culto ou o padre na missa.
Cada
um de nós talvez seja essa mistura aí de homem com anjo, ou se preferir, essa
unidade. Parece que os padres de uma maneira especial – se a pessoa é católica
– por causa do mistério e ministério sacerdotal que lhes foi gratuitamente
concedido por Deus a serviço da Igreja, da Humanidade e do Cosmos, carregam
essa árdua e alegre missão de serem sacramentos de Deus.
O
padre é outro Cristo. No dia de sua ordenação sacerdotal, Deus ungiu-o com o óleo do Espírito,
configurando-o ao Cristo Sacerdote. O padre é e está no mundo para com a
Comunidade viver, celebrar e anunciar a páscoa de Jesus até que Ele volte.
Ser
padre é um presente inefável de Deus para com a pessoa e a comunidade. Todavia,
“ninguém atribua a si mesmo essa honra, ela é recebida como puro dom de Deus” (Hb
5,4 ).
Gostaria
ainda de partilhar com você, irmã ou irmão, que mesmo sendo esse convidado do
céu, o padre é extremamente humano.
“Todo sacerdote, com efeito, tomado dentre os homens, é constituído em
favor dos homens no que respeita às suas relações com Deus. Sua função é
oferecer dons e sacrifícios pelos pecados. É capaz de ter compreensão por
aqueles que ignoram e erram, porque ele
mesmo está cercado de fraquezas e é acometido de todos os lados pela fraqueza. Por
causa dela deve oferecer, tanto em favor de si mesmo como do povo, dons e
sacrifícios pelos pecados” (Hb 5,1-3 ).
Muitas
vezes caímos na ilusão de uma imagem do sacerdote como se fosse um
extraterrestre, um super-herói, alguém sem limites, sem pecado. Ledo engano, ele é igual a um de nós, cercado
de fraquezas e acometido de todos os lados pelas fraquezas de sua condição
humana. Eu prefiro assim, me aproximar
de alguém que me aproxima de Deus por um caminho humano, de alguém fraco
como eu experimentado na força de Deus manifestada em nossas fraquezas, pecados
e infidelidades. Sua palavra e amor não será de alguém que olha de cima para um
pobre pecador lá em baixo, mas de um pecador para um pecador, de um homem para
outro homem. Ambos pecadores amados, perdoados, curados e remidos pelo Senhor.
Talvez
alguém preferisse um sacerdote desumanizado. Eu vou para aquele onde me
encontro de igual para igual, e não obstante, me comunica o perdão de Deus,
seus sacramentos, suas bênçãos e nos dá a Palavra e a Eucaristia. Ele é capaz
de ter, com conhecimento de causa,
compreensão dos fragilizados como eu, pois ele também está cercado de fraqueza.
A
verdadeira santidade cristã não é a dos heróis e dos fortes. A vida dos santos
canonizados pela Igreja passa pela experiência da fragilidade, da pobreza, do
pecado, e em alguns, até mesmo da depressão. E mais do que nas vidas dos
santos, é na existência humana do próprio Jesus, mais do que em ninguém, que
esse drama acontece, com exceção do pecado. E foi justamente no encontro com um
Deus verdadeiramente homem, Jesus de Nazaré, o homem verdadeiramente Deus,
que suas vidas foram transfiguradas. Na fragilidade se experimenta a
força, na pobreza a riqueza de suas graças, no pecado a misericórdia, na
depressão a cura e o consolo.
Está
bailando agora em minha mente algumas passagens daquele existencialista cristão
da Igreja em sua primeira hora, um homem de nome Paulo. Ele escreveu quase a metade do Novo Testamento.
Suas passagens passam em mim. Deixe
passar também em você, talvez elas possam lhe ajudar.
Fraqueza,
pobreza e pecado.
Sou fraco. Na minha fraqueza encontro Jesus. “Por certo, ele
foi crucificado em fraqueza, mas está vivo pelo poder de Deus. Também nós somos
fracos nele, todavia com ele viveremos pelo o poder de Deus”. ( 2 Cor 13,4 ).
Podemos até pensar que ser cristão é ser forte e inabalável. Mas eis que na minha carne e na sua, no meu e seu
espírito de um homem cristão, vivenciamos a debilidade da nossa carne e do
nosso espírito. Fico cansado, adoeço, me faltam as forças, caio, me sinto incapaz, peco. Contudo a fraqueza
esconde um segredo: somos fracos Nele. A
nossa união mística com Cristo crucificado nos faz viver não de nossas forças,
que nos faltam, mas do poder de Deus. E o poder de Deus emerge com toda a sua
intensidade quando fraquejamos. “Basta-te a minha graça, pois
é na fraqueza
que a força
manifesta todo o
seu poder” ( 2 Cor 12,9 ). É paradoxal. O evangelho está cheio de
paradoxos! É importante observar que não
há mágicas. Não é a fraqueza transformada em força. Isso pode também acontecer
e é muito bom quando acontece. Essas
palavras do Senhor ao apóstolo evidencia não ser necessário que cesse o estado
de fraqueza, pelo o contrário, é nesse estado que a graça atinge a perfeição.
A santidade é frágil. “Carregamos esse
tesouro em vasos de argila” (2 Cor 4,7).
Sou pobre. Sinto necessidade. Sou um ser faminto, sedento e
carente. No mundo contemporâneo, da auto-suficiência, do consumismo, do isolamento, da não pertença, não nos agrada muito o reconhecer-se necessitados. Mesmo não me agradando, deparo com a realidade de ser o homem um ser
essencialmente necessitado. Nossa natureza humana é exatamente a de sermos
necessitados dos outros e de coisas: família, amigos, sociedade, religião, etc.
O outro é imprescindível para minha sobrevivência. Essa pobreza essencial não é uma faceta do
meu ser, é toda a minha existência, é o meu
próprio ser. Eu sou radicalmente pobre. Num dos primeiros capítulos
desse livro conversávamos da sede e fome de Deus. Ele é o totalmente Outro, o
Ser Necessário para mim um ser necessitado. Essa busca desenfreada de prazer e
bem-estar, a nossa atração por aquilo que é bom e belo, é na verdade uma busca
inconsciente de Deus.
Sou
pobre. Na minha pobreza encontro Jesus. “Nós conhecemos a generosidade de nosso
Senhor Jesus Cristo, que por causa de nós se fez pobre, embora fosse rico, para
nos enriquecer com a sua pobreza”( 2 Cor 8,9 ). Deus nasceu e viveu no mundo
não como se esperaria que um deus vivesse. Escolheu a pobreza da existência
humana para, com sua pobreza, proporcionar à pobreza de todos, por quem se fez
pobre, a riqueza eterna da redenção. Nos enriquecer com a sua pobreza. Jesus, Deus Filho feito homem, despojou-se de sua
divindade e quis compartilhar a pobreza de nossas necessidades, nossos
sofrimentos e nossa morte, para nos enriquecer da graça do amor divino. A graça
do amor divino nos humaniza plenamente e, assim como homem pleno, somos
divinizados. Não há dicotomia ou dualismo. Só sou plenamente humano quando sou
plenamente divino e, sou plenamente divino quando sou humano em sua inteireza.
Na
pobreza extrema de Jesus a minha pobreza radical encontra as delícias das riquezas
profundas. Ele é o tesouro escondido no campo encontrado pelo camponês. A
pérola preciosa de maior valor. O presente de Deus para a humanidade e o
cosmos. Cristo é o bem que necessitamos.
Ele é o cumprimento da profecia do salmista: “Transborda um poema do meu
coração; vou cantar-vos, ó Rei, esta minha canção; minha língua é qual pena de
um ágil escriba. Sois tão belo, o mais belo entre os filhos dos homens! Vossos
lábios espalham a graça, o encanto” ( Sl 44,2-3 ). Cristo é a expressão do ser
de Deus, quem o viu, viu o Pai. Ele é a Imagem do Deus invisível. O essencial é
invisível aos olhos, sentenciou a raposa ao Pequeno Príncipe. Cristo é a beleza atraente e fascinante que
buscamos. Cristo é o evento da humanidade. Nele somos curados da cegueira dos
nossos corações. É a partir desse acontecimento crístico que abrimos os nossos
olhos para ver o bom e o belo. Com os olhos do coração curados contemplo a
bondade e a beleza de Deus, do homem e da mulher, das artes e das coisas, da
natureza e do espaço sideral e a minha própria beleza.
“Sou
pobre e desvalido, porém guarda o Senhor minha vida, e por mim se desdobra em
carinho” ( Sl 39,17 ). Deus é o Ser Necessário para mim um pobre ser
necessitado.
Sou pecador. O bom e belo me atraem. Todavia, sou atirado
muitas vezes por uma falsa beleza e arrastado por um mal sob as aparências de
bem. “Não faço o bem que eu quero, mas o
mal que não quero” ( Rm 7,19 ). Há uma luta e uma peleja interior. Caímos
derrotados. Peco contra Deus, os meus irmãos, o meio ambiente e contra mim mesmo. No meu pecado encontro Jesus.
“Aquele que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a fim
de que por ele, nos tornemos santos de Deus” ( 2 Cor 5,21 ). Como somos fracos
nele, e em sua pobreza somos enriquecidos, assim também, é por Ele que se fez
pecado, que somos perdoados e santificados. Na sua humanidade e na cruz, Jesus
carregou o peso de nossas dores e de nossos pecados. Deus tornou Cristo
solidário com o gênero humano pecador, a fim de tornar os homens solidários com
o sacrifício livre, voluntário, consciente e amoroso de Cristo na cruz. “Sabemos que o nosso velho
homem foi crucificado com ele para que fosse destruído esse corpo de pecado, e
assim não sirvamos mais ao pecado” ( Rm 6,6 ).
Não
sirvamos mais o pecado. Todavia, pecamos. A resposta está naquele “já” e
“ainda não” vistos anteriormente.
Também o pecado esconde um segredo: “Onde abundou o pecado, a graça
superabundou” ( Rm 5, 20 ). Assim como a força manifesta todo o seu poder na
fraqueza, do mesmo modo a misericórdia manifesta todo o seu amor onde o pecado avultou. É mais forte a
minha experiência mística do amor de
Deus que perdoa todos os meus pecados,
por maior que sejam, do que a êxtase espiritual, a oração em línguas, as
visões, os dons e carisma. Nesta eu posso me iludir de que Deus me ama porque
eu o amo, porque eu sou bom e santo; na outra, experimento que Deus me ama
porque me ama. Deus ama não é porque eu
o amo, mas porque Ele me ama; Deus me ama não porque eu sou bom, mas por que Ele
é bom. Deus me ama não porque eu sou santo, mas porque Ele é santo.
A
gente costuma dizer que “Deus escreve certo por linhas tortas” ou ainda, “há
males que vem para o bem”. O pecado pode se transformar numa lição onde eu vou
aprendendo com os meus erros, também me fará humilde e acolhedor. “Tudo
concorre para o bem dos que amam a Deus” ( Rm 8, 28 ). Tudo, até mesmo o
pecado.
Onde
foi grande o pecado, maior foi o perdão.
E daí? Vamos pecar e viver pecando para crescer em nós a benevolência de Deus?
O apóstolo também se pergunta na
continuação de sua carta. “Que diremos, então? Que devemos permanecer no pecado
a fim de que a graça atinja sua plenitude? De modo algum! Nós que morremos para
o pecado, como haveríamos de viver ainda nele? Ou não sabeis que todos os que
fomos batizados em Cristo Jesus, é na sua morte que fomos batizados? Portanto pelo o batismo nós fomos sepultados
com ele na morte para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela
glória do Pai, assim também nós vivamos uma vida nova” ( Rm 6,1-4 ).
Lá
mais em cima no texto eu me referi a umas das enfermidades do nosso tempo. Ela
pode acometer a mim e você. Estou falando da depressão. Na minha depressão
encontro Jesus. Quando misteriosamente, na química do meu corpo-mente e nos sentimentos
da minha alma me faltam a alegria, as
forças e o gosto pela vida, encontro Jesus angustiado. “Minha alma está triste
até a morte”( Mc 14,34 ). Escuto-o: “Em suas dores estarei a seu lado”( Sl
90,15 ). Quando a vida me cansa e me cansa ser homem, a voz desse homem
deprimido, caído com o rosto por terra no Getsêmani, como caído e prostrado no
chão se encontra a minha alma e o meu físico deprimido, a sua voz saindo de sua
carne da minha carne – embora seja ele Deus – vai me curando. O homem do Getsêmani
é o mesmo da beira do lago: “Vinde a mim todos o que estais cansados sob o peso
do vosso fardo e eu vos darei descanso, eu vos aliviarei... e encontrareis descanso para vossas almas,
pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve”( Mt 11,28-30 ). A leveza e a
suavidade de Deus. Encontramos em Jesus o descanso e o remédio para a cura da
nossa depressão. É claro que a fé não
está em detrimento da medicina e da psicologia que cumprem o seu papel
indispensável no processo terapêutico para sair da depressão. Acredito que uma
pessoa que tem uma vida religiosa e passa por uma depressão ( depressão não é
falta de fé! ) se souber unir fé + remédios + terapia + carinho das pessoas +
convívio com a natureza, ela terá mais chances de conviver com a depressão, enquanto estiver
doente, e de sair dela mais fortalecida e reintegrada.
Depois
desse baile dos pensamentos de Paulo na minha cabeça, só tenho uma coisa a
dizer de Jesus Cristo.
A
Humanidade de Cristo é o caminho para nossa humanidade. O caminho onde cada pessoa
humana se torna mais humana e mais pessoa. Caminho que torna o homem mais homem
e a mulher mais mulher. Caminho para Deus. Caminho para Deus e para os homens.
“Nele temos um caminho novo e vivo, que ele mesmo inaugurou através da sua
humanidade” (Hb 10,20 ).
Eu
sou um padre. Cercado de fraquezas por todo os lados, mas bem mais cercado de
carinho e misericórdia. “Por conseguinte, com todo ânimo prefiro gloriar-me das
minhas fraquezas, para que pouse sobre mim a força de Cristo. Por isto, eu me
alegro nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições, nas
angústias por causa de Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte” (
2 Cor 12,4 ).
Sou
padre. O padre corre o risco de falar aos fiéis como um catedrático da cadeira
do céu aos seus universitários da terra, como um professor aos seus alunos, um
mestre aos discípulos, um super-homem aos homens, um santo aos pecadores. Como
disse no começo deste livro, eu gostaria de falar a você como um de você. Este
livro não é um ensinamento ou exortação. Ah, meu irmão, se você já reparou
direito, este livro não é sequer um livro, é uma confissão, uma partilha. Este
livro é uma confidência.
Padre Fabio Potiguar Santos é Capelão das Fronteiras, membro da Comissão de Justiça e Paz e coordenador da Comissão para o Ecumenismo e o Diálogo Inter- religioso da Arquidiocese de Olinda e Recife
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