Maria Clara Lucchetti Bingemer
Nesta tão esperada encíclica, o Papa Francisco resgata os principais
documentos e pronunciamentos de seu pontificado para falar da fraternidade
humana, um projeto tão adiado e ao mesmo tempo tão urgente. Faz uma nova e
inspirada síntese, onde a figura de Francisco de Assis continua a ser um farol
iluminador e inspirador
Trata-se de um documento escrito sob o incentivo da colaboração anterior
com um irmão de outra religião, o Grande Imam Ahmad Al-Tayyeb, com quem já
havia assinado o documento sobre a fraternidade humana em favor da paz mundial
e da coexistência comum, em Abu Dhabi, em 2019. Portanto, é um documento em
perspectiva de diálogo: com a melhor tradição da Igreja Católica (Francisco de
Assis, padres da Igreja, papas antigos e recentes), com outra religião (Mahatma
Mohandas Gandhi, o Grande Imam Ahmad Al-Tayyeb), líderes cristãos de outras
denominações (Martin Luther King, Desmond Tutu), pensadores renomados (Gabriel
Marcel, Karl Rahner), escritores (Eloi Leclerc), poetas e compositores
(Vinicius de Moraes).
Francisco afirma que enquanto escrevia a encíclica, explodiu a
pandemia. Segundo ele, esse fato expôs a falsa segurança em que nos
encontramos, confiando em uma cultura tecnocrática que nos protegeria de
qualquer ameaça. Evidenciou igualmente nossa incapacidade de agir em conjunto.
Começa, assim, com a esperança de que os cristãos e todos os homens e mulheres
de boa vontade redescubram a importância incontornável da fraternidade, sonho
da humanidade tantas vezes adiado.
Em seu diagnóstico, a Encíclica menciona os sonhos de integração que
hoje fracassaram: da Europa, da América Latina etc. A globalização conectou os
indivíduos, mas não conseguiu superar o individualismo e formar comunidade e
fraternidade, impondo um modelo cultural único (n.12) e atingindo a consciência
histórica e a memória viva das culturas indígenas (n.14).
Nesse ambiente onde a única aspiração é consumir sem limites (n 13), a
política perdeu sua característica de discussão sadia sobre projetos de longo
prazo para o bem comum e se tornou um conjunto de estratégias que visam a
destruição do outro para obter posições que trarão benefícios ilegítimos para
alguns. (n 15)
Enquanto no “Laudato Si” o pontífice propunha uma conversão ecológica
que levasse todos a se entenderem como seres vivos que vivem e cuidam de uma
casa comum, agora se volta para a humanidade, desejando que ela compreenda que
cuidar do mundo significa cuidar de si mesmo. É quando ele desenvolve seu
triste diagnóstico de que nossa cultura é marcada pelo descarte.
Algumas categorias de pessoas surgem como grandes vítimas deste
descarte: os idosos, os deficientes, os pobres, os migrantes. São descartados e
eliminados de todas as previsões e mapas porque não são mais úteis, não
lubrificam mais a roda de uma sociedade baseada no sucesso e no consumo e não
na fecundidade (n 193 ss).
A partir do n. 56, o Papa parece deixar claro que o Evangelho tem algo a
dizer nesta situação. É quando começa a expor e comentar a parábola do Bom
Samaritano em Lucas 10,25-37. Anuncia a responsabilidade universal de uns para
com os outros, única via para a fraternidade. A atitude do samaritano diante do
estrangeiro ferido à beira da estrada é a verdadeira atitude humana. Não
importa se o ferido é daqui ou dali. Está ferido, e isso é o que importa, o que
obriga à compaixão. (n.62). Assim deve ser a humanidade, não composta de sócios
que usam os relacionamentos para obter lucro, mas de irmãos que amam e servem
livremente (n 101-105).
Para isso, mudanças estruturais devem ser feitas, além da conversão pessoal,
diz o Papa. E uma delas é voltar a propor a função social da propriedade. Isso
se aplicaria igualmente aos povos. Se o destino dos bens da terra é comum a
todos, deve valer igualmente para todos os países. Cada país é do estrangeiro,
assim como do cidadão (nº 124). E o pontífice reafirma continuamente a sua
convicção de que os migrantes são uma bênção e uma riqueza que convida uma
sociedade a crescer e, por isso, devem ser ajudados a integrar-se (n. 135).
O texto não permanece em nível intersubjetivo, chega ao coletivo
falando diretamente da política. E o faz denunciando tanto as "formas
populistas", como as "formas liberais", que fazem uso do povo ou
servem aos poderosos (n. 155). Defende a legitimidade da noção de “povo” e a
aplica à fraternidade e à amizade social. A boa política é chamada a ser uma
das formas mais preciosas de caridade, porque visa ao bem comum (n.180).
A caridade assim vista é mais do que um sentimento subjetivo. Trata-se
de um compromisso com a verdade e com a construção de processos de
desenvolvimento humano de alcance universal. (n.184). Implica sempre um amor
preferencial pelo mais pobre, que envolve muito mais do que obras de caridade.
E aqui Francisco torna cada vez mais clara sua convicção de que só assim, num
esforço que começa “por baixo”, pelos mais pobres, nas margens, é possível
construir uma fraternidade verdadeiramente universal que não deixa ninguém de
fora. “Se há que recomeçar, que seja sempre a partir dos últimos ”
(n.235).
O consenso deve ser buscado em um ambiente de diálogo e escuta da
diferença do outro, incluindo todos e garantindo os direitos de todos (n.
215-221). E para que isso aconteça, o ateu tem que estar junto com o crente e
com os fiéis de outra religião; os segmentos da sociedade abertos à escuta
mútua em um pacto social e cultural (n. 215-221); e a justiça e a misericórdia
devem dar-se as mãos.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio
e autora de “Santidade: chamado à humanidade
(Editora Paulinas), entre outros livros.
Copyright 2020 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário