Leonardo Boff
Qual eram
os dogmas da fé capitalista e neoliberal? O essencial é o lucro, no menor tempo
possível, a concorrência feroz, a acumulação individual ou corporativa, o
saque cruel dos recursos da natureza, deixando as externalidades por conta do
estado, a indiferença face à taxa de iniquidade social e ambiental, a
postulação de um Estado mínimo para escapar das leis limitantes e poder
acumular mais desimpedidamente.
Se
tivéssemos seguido estes mantras,o extermínio de vidas humanas seria
incalculável. Sem políticas públicas as pessoas seriam tragadas por um destino
atroz.
O que nos
tem salvado? Aqueles valores e atitudes ausentes no sistema do capital e
neoliberal: a percepção de que não somos “deuses” mas totalmente vulneráveis e
mortais, expostos à imprevisibilidade. O que conta não é o lucro mas a vida; não é a concorrência mas a solidariedade; não é individualismo mas a cooperação entre todos; não é o assalto aos bens e
serviços da natureza mas o seu cuidado e
proteção; não é um estado mínimo, mas o estado suficientemente apetrechado para
atender as demandas urgentes da população. Dito diretamente: o que vale mais
a vida ou o lucro? A natureza ou
a sua expoliação desenfreada?
Responder
a estas perguntas impostergáveis é interrogar-se sobre o sentido ou o absurdo
de nossa vida, pessoal e coletiva. O isolamento social é uma espécie de retiro
existencial que a situação nos impôs. Cria-se a oportunidade de colocar estas
questões inadiáveis.Nada é fortuito nesse mundo. Tudo guarda uma lição ou um
sentido secreto que cabe desvendar, por mais perplexa que seja a realidade. O
que não podemos é permitir que esse sofrimento coletivo seja em vão. Ele
funciona como um crisol que purifica o ouro, que acrisola nossa mente, e põe em
xeque certos hábitos a serem revistos e novos a serem incorporados
especialmente com referência à nossa relação para com a natureza e o tipo de
sociedade que queremos, menos perversa e mais solidária.
Todos
falam da medicina, da técnica e dos insumos e principalmente da busca ansiosa
de uma vacina contra o Covid-19. Poucos são os que falam da natureza. Precisamos
considerar o contexto da irrupção do coronavírus. Ele não é isolado. Veio da
natureza que por séculos foi saqueada irresponsavelmente pelo processo
industrialista do capitalismo e também do socialismo, no falso pressuposto de
que a Terra teria recursos infinitos. Desmatamos impiedosamente e assim
destruímos os habitats dos milhares de vírus que vivem nos animais e até nas
plantas. Perdendo sua “morada natural” buscam em nós um lugar de sobrevivência.
Desta forma temos conhecido uma vasta gama de vírus como o zica, o
chikungunya,o ebola, a série derivados do SARS como o Covid-19 entre outros.
Temos a
ver com um contra-ataque da natureza ou da Mãe Terra contra a humanidade, que
querem nos transmitir uma severa admoestação: ”parem com a agressão impiedosa,
destruindo as bases físico-químicas-ecológicas que sustentam a vossa vida; caso
contrário poderemos lhes mandar vírus muito mais letais que poderão dizimar
bilhões de vocês, da espécie humana, e afetar gravemente a biosfera, aquela
fina capa um pouco maior que um fio da navalha que garante a continuidade da
vida”.
Predominarão
estas advertências vitais ou o afã de acumular e garantir os interesses
materiais? Teremos suficiente sabedoria para responder à alternativa que Aquele
Ser que faz ser todos os seres: “proponho-vos a vida e a morte, a bênção e a
maldição; escolhe a vida para que vivas com tua descendência” (Deut 30,19)?
Portadores
de uma fé num `Deus, apaixonado amante da vida” (Sab 11,26) apostamos ainda num
sentido da história e da vida. Elas escreverão a última página da saga
humana, construída com tanto esforço neste planeta.
Isso
porém não nos deve desviar o olhar sobre o que está ocorrendo no cenário
mundial e especificamente no brasileiro onde um chefe de estado, negacionista,
não tem como projeto cuidar de seu povo e de nossa luxuriante natureza.Com
desprezo e ironia assiste qual Nero que assistia Roma sendo queimada e ele
tocando cítara.
A
despeito disso tudo, nossa esperança não morre. Como afirma a Fratelli tutti do Papa Francisco: “A esperança nos fala de uma realidade enraizada no profundo do ser
humano, independentemente das circunstâncias concretas e dos condicionamentos
históricos em que vive”(n.55). Aqui ressoa o princípio esperança, que é mais que uma virtude, mas
um princípio, motor interior, que projeta sonhos e visões novas, tão bem
formulado pelo filósofo alemão Ernst Bloch em seu O Princípio Esperança. Esta esperança nos resgatará um
sentido de viver neste pequeno e amado planeta Terra.
Apesar de
sermos seres contraditórios, feitos simultaneamente de luz e de sombras, cremos
que a luz triunfará. Atestam-nos tantos bioantropólogos e neurocientistas:
somos por essência seres de bondade e de cooperação. Vigora uma bondade
fundamental na vida.
O homem
comum que compõe a grande maioria, se levanta, perde precioso tempo de
vida nos ônibus, vai ao trabalho, não raro penoso e mal remunerado, luta pela
família, se preocupa com a educação de seus filhos, sonha com um país melhor.
Surpreendentemente, é capaz de gestos generosos, auxiliando um vizinho mais
pobre do que ele e, em casos extremos, arrisca a vida, para
salvar uma inocente menina ameaçada de estupro. Nele está
agindo o princípio esperança.
Nesse
contexto não me furto de citar os sentimentos de um de nossos maiores
escritores modernos Erico Veríssimo. Em seu famoso “Olhai os
lírios do campo”:
“Se
naquele instante caísse na terra um habitante de Marte, havia de ficar
embasbacado ao verificar que num dia tão maravilhosamente belo e macio, de sol
tão dourado, os homens em sua maioria estavam metidos em escritórios, oficinas,
fábricas … E se perguntasse a qualquer um deles: ‘Homem, por que trabalhas com
tanta fúria durante todas as horas de sol?’ – ouviria esta resposta singular:
‘Para ganhar a vida’. E no entanto a vida ali estava a se oferecer toda, numa
gratuidade milagrosa. Os homens viviam tão ofuscados por desejos ambiciosos que
nem sequer davam por ela. Nem com todas as conquistas da inteligência tinham
descoberto um meio de trabalhar menos e viver mais. Agitavam-se na terra e não
se conheciam uns aos outros, não se amavam como deviam. A competição os
transformava em inimigos. E havia muitos séculos, tinham crucificado um profeta
que se esforçara por lhes mostrar que eles eram irmãos, apenas e sempre irmãos.
(Olhai os Lírios do Campo, Civilização Brasileira, Rio
de Janeiro 1973. p. 292).
A
intrusão do Codiv-19 revelou estas virtudes, presentes nos humanos, mas de modo
especial nos pobres e nas periferias, porque lá se refugiaram, pois nas cidades
impera a cultura do capital, com seu individualismo e falta de sensibilidade
face à dor e ao sofrimento das grandes maiorias da população.
O que se
esconde atrás destes gestos cotidianos de solidariedade? Esconde-se o princípio
esperança e a confiança de que, apesar de tudo, vale a pena viver porque a
vida, na sua profundidade, é boa e foi feita para ser levada com coragem que
produz autoestima e sentido de valor.
Há aqui
uma sacralidade que não vem sob o signo religioso mas, sob a perspectiva do
ético, do viver corretamente e do fazer o que deve ser feito.
O
renomado sociólogo austríaco-norte-americano Peter Berger, já falecido,
escreveu um brilhante livro, relativizando a tese de Max Weber sobre a total
secularização da vida moderna com o título:”Um rumor de anjos: a sociedade
moderna e a redescoberta do sobrenatural (Vozes 1973/2013). Aí
descreve inúmeros sinais (chama de “rumor de anjos”) que mostram o sagrado da
vida e o sentido secreto que ela sempre guarda, a despeito de todo caos e
dos contrassensos históricos.
Aduzo, na
esteira de Peter Berger, apenas um exemplo banal, entendido por todas as mães
que acalentam suas crianças à noite.
Uma delas
acorda sobressaltada. Teve um pesadelo, percebe a escuridão, sente-se só e é
tomada pelo medo. Grita pela mãe. Esta se levanta, toma a criancinha no colo e
no gesto primordial da magna mater cerca-a
de carinho e de beijos, fala-lhe coisas doces e sussurra: ”Filhinha, não tenha
medo; sua mãe está aqui. Está tudo bem e está tudo em ordem, querida”. A
criança deixa de soluçar. Reconquista a confiança e um pouco mais e mais um
pouco, adormece, serenada e reconciliada com a escuridão.
Esta cena
tão comum, esconde algo radical que se manifesta na pergunta: será que a mãe
não está enganando a criança? O mundo não está em ordem, nem tudo está bem. E
contudo, estamos certos: a mãe não está enganando sua filhinha. Seu gesto e
palavras revelam que, não obstante a desordem reinante, impera uma ordem
profunda e secreta.
Assim
cremos que os tempos de Covid-19, tão dramáticos, hão de passar. Esperamos e
como esperamos que, por debaixo deles e dentro deles, vai se fortalecendo uma
ordem abscôndita que, quando tudo passar, irá irromper.
Assim a
sociedade e a inteira humanidade poderão caminhar rumo a um sentido maior, cujo
desenho final nos escapa. Mas intuímos desde sempre, que ele existe e será
bom. A ele caberá escrever a última página com um happy end. Como escreveu
o filósofo do Princípio Esperança, Ernst Bloch, verificaremos que o
verdadeiro gênesis não estava no começo
das coisas mas no seu fim. Só então será
verdade: “Deus viu tudo quanto havia feito e achou que estava muito bom”(Gen 1,31).
Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor e escreveu Saudade de Deus”, Vozes 2019.
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