Maria Clara Lucchetti Bingemer
Há poucos dias o Brasil celebrou mais uma vez o Dia da Consciência Negra.
Infelizmente a celebração foi marcada pelo brutal assassinato por espancamento
de um cidadão negro chamado João Alberto Vieira Freitas em um supermercado
Carrefour de Porto Alegre. Casado e pai de quatro filhos, João Alberto morava
na Vila do IAPI, lugar onde passou sua infância a grande cantora Elis
Regina.
Diante do corpo espancado até a morte de João Alberto, talvez Elis Regina
tivesse dificuldade de cantar seu grande sucesso “Black is beautiful”, de
Marcos Valle, que diz: “black beauty is so peaceful”. Era tudo menos
pacífica a cena que todas as emissoras do país mostraram, com dois homens
jogando-o ao chão, espancando-o e esmagando seu corpo até tirar-lhe o hálito da
vida. Ainda houve filmagem e fotografias para caracterizar bem a
crueldade do macabro espetáculo.
Mas parece que não há racismo no Brasil. Pelo menos é isso que dizem muitos.
Vivemos uma democracia racial. Não pesou nada o fato de João Alberto ser
negro para que acontecesse o seu massacre. De minha parte, porém, creio
que houve sim, porque o racismo infelizmente está entranhado na sociedade
brasileira e é perversamente estrutural.
João Alberto teria, segundo depoimentos, molestado uma mulher dentro do
supermercado e por isso fora interpelado pelos seguranças. Perdeu a calma
e agrediu um deles com um soco. Deveria ter sido contido e até eventualmente
conduzido à delegacia. Mas não. Sem chance de defesa, foi massacrado.
Como era negro devia ser perigoso. Então a violência que caiu sobre ele foi
mortal. A desproporção entre seu comportamento e o tratamento que recebeu
estava em direta relação com sua raça e a cor de sua pele.
Acontece que João Alberto compartilha essa condição e essa negritude com uma
parte esmagadora de todo o povo brasileiro. Muitos poucos de nós podemos dizer
que em nossas veias não corre gota alguma de sangue negro. A miscigenação
do europeu com o negro africano povoou este país com todas as nuances de
pardos, mulatos e mestiços. E apesar disso o racismo ainda permanece vivo
produzindo horrores como o deste último Dia da Consciência Negra.
O racismo no Brasil é
velado e por isso mesmo mais insidioso. Penetra nas consciências e nas
mentalidades, e passa a ser encarado com naturalidade. Como natural é que
aquela que chega convidada para um jantar em algum prédio de classe média seja
mandada pelo porteiro para o elevador dos fundos e a entrada de serviço pelo
fato de ser negra.
Natural também é o fato
de que as cidades brasileiras hajam construído para si um verdadeiro apartheid
social, abrigando os brancos nas zonas chiques, elegantes, mais seguras e bem
policiadas, e enviado os negros para as favelas, os mocambos, as comunidades construídas
em encostas que caem sistematicamente em cada enchente e onde a polícia não é
uma segurança, mas um perigo a mais.
Faz parte das coisas
naturais igualmente que jovens negros abaixo de trinta anos sejam
sistematicamente investigados nos transportes públicos e nas ruas a partir de
determinada hora. E nessas circunstâncias muitas vezes sejam presos,
espoliados de seus documentos ou agredidos fisicamente. São negros, boa coisa
não devem estar tramando.
Assim foi natural na
história do Brasil que a mulher negra se responsabilizasse pelos serviços na
casa grande, limpando, lavando, passando, cozinhando e, de volta à senzala
atender desejos e necessidades do senhor e de sua legítima e biológica
descendência. Assim foi natural que as mulheres negras criassem filhos além dos
seus próprios, amamentando, trocando fraldas, acalentando, adormecendo,
acordando, alimentando os filhos da família, sendo chamadas carinhosamente de
“mães pretas”. A suplência do papel materno na verdade era da mãe biológica,
porque quem fazia tudo que de uma mãe se espera era a mulher negra.
Mas além do trabalho
doméstico, há outros nichos que se reconhecem como lugares adequados aos
negros: o esporte, sobretudo o futebol; o samba; o desfile da escola de samba,
onde as mulatas brilham com sua beleza estonteando os turistas
estrangeiros. Ali estão em seu espaço e seu lugar. Se aparecem em
espaço alternativo, cuidado. Pode acontecer-lhes algo parecido com o que
se passou com João Alberto.
A grande socióloga Lélia
Gonzalez escreveu brilhantemente a respeito de nosso racismo estrutural e
velado. Narrou que cansou de abrir a porta de sua casa e escutar a
cordial pergunta do vendedor: “A madame está? ” Passou a responder:
“Saiu”. Mas continuou ouvindo essa e outras perguntas, como: “Você trabalha na
televisão?”, “Você é artista?”. Sabia o que estava por trás desse
trabalho e dessa arte.
Chegamos a um ponto em
que é preciso ver claro que a madame saiu porque não há mais lugar para
ela. O sistema doméstico não pode continuar sendo a reprodução do sistema
casa grande e senzala que tristemente definiu um perfil do Brasil. Não temos o
direito de criticar qualquer outro país por delitos raciais, pretextando que
aqui contamos com leis que protegem a população negra. O racismo é doença
nossa. E doença grave. George Floyd mora aqui. E hoje se chama João
Alberto, assim como ontem foi João Pedro e Marielle Franco. E também não
consegue respirar.
Maria Clara
Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora
de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros
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