Marcelo Barros
No Brasil, o dia de
ação de graças, instituído pelo governo brasileiro, não tem a mesma importância
que tem nos Estados Unidos. Lá a data é celebrada desde o século XVII e é
feriado. A cada ano, governo e sociedade consagra a quarta quinta-feira de
novembro para agradecer a Deus as suas vitórias. O agricultor agradece a Deus a
boa colheita; assim como o comerciante, a prosperidade do comércio. Quem ganhou nas recentes
eleições deve estar agradecendo a vitória. A ação de graças pode ser coletiva,
mas por vitórias individuais ou de grupos que se sentem protegidos. Pouco
importam os outros. Em meio a uma sociedade de milhões de pessoas que não
garantem nem o pão nosso de cada dia, alguém sai às ruas com um carro de luxo
no qual está escrito: Este carro foi Jesus que me deu. Os mais bem sucedidos
agradecem a Deus os seus ganhos e convencem os que perderam que, se não
ganharam foi porque não mereciam. Nos séculos passados, os senhores agradeciam
pela quantidade de negros que tinham conseguido comprar e pelos territórios
indígenas que tinham roubado das tribos originais. Até hoje, esta ação de
graças está expressa nas palavras escrita nas células do dólar e reproduzida em
alguns bancos e estabelecimentos comerciais: “Nós confiamos em Deus”.
Para quem tem algum
senso crítico, esta religião civil tem pouco a ver com o evangelho. Por isso,
no nome do mesmo Jesus, irmãos e irmãs de várias Igrejas combatem o
armamentismo espalhado pelo país, o imperialismo do governo e a falsa ética
cristã da sociedade dominante.
No Brasil, em 1965, um
ano depois do golpe militar pelo qual tomou o governo, o presidente Castelo
Branco determinou a celebração nacional do dia de ação de graças, na mesma data
dos Estados Unidos e encarregou o Ministério da Justiça de coordenar esta
celebração.
Um Deus que legitima
iniquidade não é o Deus de Jesus. Conforme a Bíblia, “oferecer a Deus orações e ofertas baseadas em injustiças, é como tirar
a vida de um filho imaginando que assim se agradaria ao pai” (Eclo 34, 18
ss).
É verdade que 2020 tem
sido um ano de muitos desafios e de imensos sofrimentos para toda a sociedade. Como
o papa Francisco chamou a atenção em sua carta encíclica Somos todos irmãos e
irmãs, a pandemia pôde ceifar mais vidas e trazer mais sofrimentos porque a
maioria dos países tinha desarticulado o seu sistema público de saúde e a
solidariedade internacional quase não funcionou. O vírus contagia, por igual a
pobres e ricos. No entanto, encontra mais vítimas entre as pessoas que vivem
amontoadas em habitações irregulares, sem saneamento básico, sem acesso à água
potável e sem condições mínimas de se protegerem.
De todo modo, temos
muitos motivos para dar graças e para reconhecer a ação divina atuando na nossa
vida. A ação de graças é boa e deve ser uma atitude permanente de quem crê, mas
se nos deixamos realmente mover pelas orientações de amor do Espírito de Deus. Podemos
agradecer a resistência cotidiana do nosso povo, os gestos e manifestações de
solidariedade que crescem nas periferias e nos ambientes humanos mais
desafiadores. Podemos agradecer o fato de que ainda quando a realidade parece
sem saída, optamos sempre por alimentar a esperança.
Quem procura ligar fé
e vida aprende a discernir nos acontecimentos do dia a dia os sinais da presença
íntima e discreta do Espírito que atua através das pessoas que aceitam ser
instrumentos da atuação divina. Mesmo no meio das situações mais adversas, é
possível esperar contra tudo o que seria a expectativa normal. A realidade é,
de fato, problemática. No entanto, optamos por crer. Por isso vivemos a esperança
da realização do projeto divino no mundo e ninguém poderá nos roubar a confiança
de que o reino de Deus virá. Isso se concretizará aqui e agora, no fato de que outro
mundo será, sim, possível. Conforme o apóstolo, essa esperança tem três
características: não se corrompe, não se desgasta, nem se dilui (1 Pd 1, 3-
12). Ela nos convoca a nos manter unidos/as em comunidades e a antecipar nos
sinais da celebração litúrgica aquilo que queremos viver no dia a dia do mundo:
a comunhão.
A
cada ano, quatro semanas antes do Natal, portanto, a partir do próximo domingo,
as Igrejas cristãs mais antigas começam um novo ciclo de celebrações que formam
o chamado “ano litúrgico”, com o tempo chamado “Advento”. Seu objetivo é
preparar a festa do Natal e realimentar nas pessoas a esperança da realização
do projeto divino de paz e justiça eco-social aqui e agora.
Marcelo Barros, monge beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é "Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
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