Leonardo Boff
Lamento de cativeiro e de libertação
Neste
dia, 20 de novembro de 2020, quando celebramos o dia da consciência negra, dia
de reflexão contra o racismo e de reconhecimento da dignidade da população
negra no Brasil (mais da metade da população), foi covardemente assassinado, a
pancadas e sufocado até à morte, o negro João Alberto Freitas, de 40 anos, por
dois seguranças e um policial num Carrefour de Porto Alegre. As cenas mostram
inominável brutalidade e covardia e revelam todo o racismo presente em setores
da sociedade e o quanto desumandos e cruéis podemos ser.
Em
homenagem a João Alberto Freitas republico um texto lançado tempos atrás mas
que guarda permanente atualidade
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A Paixão
de Cristo continua pelos séculos afora no corpo dos crucificados. Jesus
agonizará até o fim do mundo, enquanto houver um único de seus irmãos e irmãs
que esteja ainda pendendo de alguma cruz, à semelhança dos bodhisatwas budistas (os iluminados) que param no
umbral do Nirvana para retornarem ao mundo da dor –samsara – em solidariedade
com quem sofre, pessoas, animais e plantas. Nesta convinção, a Igreja Católica,
na liturgia da Sexta-feira Santa, coloca na boca do Cristo estas palavras
pungentes:
”Que te
fiz, meu povo eleito? Dize em que te contristei! Que mais podia ter feito, em
que foi que te faltei? Eu te fiz sair do Egito, com maná de alimentei.
Preparei-te bela terrra, tu, a cruz para o teu rei”.
Celebrando
a abolição da escravatura a 13 de maio de 1888, nos damos conta de que ela não
foi completada ainda. A paixão de Cristo continua na paixão do povo negro.
Falta a segunda abolição, da miséria e da fome. Ouvem-se ainda os ecos dos
lamentos de cativeiro e de libertação, vindos das senzalas, hoje das favelas ao
redor de nossas cidades. A população negra ainda nos fala em forma de lamento:
“Meu
irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te
contristei? Responde-me!
Eu te
inspirei a música carregada de banzo e o ritmo contagiante. Eu te ensinei como
usar o bumbo, a cuica e o atabaque. Fui eu que te dei o rock e a ginga do
samba. E tu tomaste do que era meu, fizeste nome e renome, acumulaste dinheiro
com tuas composições e nada me devolveste.
Eu desci
os morros, te mostrei um mundo de sonhos, de uma fraternidade sem barreiras.Eu
criei mil fantasias multicores e te preparei a maior festa do mundo: dancei o
carnavalpara ti. E tu te alegraste e me aplaudiste de pé. Mas logo, logo, me
esqueceste, reenviando-me ao morro, à favela, à realidade nua e crua do
desemprego, da fome e da opressão.
Meu irmão
branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei?
Responde-me!
Eu te dei
em herança o prato do dia-a-dia, o feijão e o arroz. Dos restos que recebia,
fiz a jeijoada, o vatapá, o efó e o acarajé: a cozinha típica do Brasil. E tu
me deixas passar fome. E permites que minhas crianças morram famintas ou que
seus cérebros sejam irremediavelmente afetados, infantilizando-as para sempre.
Eu fui
arrancado violentamente de minha pátria africana. Conheci o navio-fantasma dos
negreiros. Fui feito coisa, peça, escravo. Fui a mãe-preta para teus fihos.
Cultivei os campos, plantei o fumo e a cana. Fiz todos os trabalhos. Fui eu que
construi a belas igrejas que todos admiram e os palácios que os donos de
escravos habitavam. E tu me chamas de preguiçoso e me prendes por vadiagem. Por
causa da cor da minha pele me discriminas e me tratas ainda como se continuasse
escravo.
Meu irmão
branco, minha irmã branca, meu povo:que te fiz eu e em que te contristei?
Responde-me!
Eu soube
resistir, consegui fugir e fundar quilombos: sociedades fraternais, sem
escravos, de gente pobre mas livre, negros, mestiços e brancos. Eu transmiti
apesar do açoite em minhas costas, a cordialidade e a doçura à alma brasileira.
E tu enviaste o capitão do moto para me caçar como bicho, arrasaste meus
quilombos e ainda hoje impedes que a abolição da miséria que escraviza, seja
para sempre verdade cotidiana e efetiva.
Eu te
mostrei o que significa ser templo vivo de Deus. E, por isso, como sentir Deus
no corpo cheio de axé e celebrá-lo no ritmo, na dança e nas comidas. E tu
reprimiste minhas religiões chamando-as de ritos afro-brasileiros ou de simples
folclore. Invadiste meus terreiros, jogando sal e destruindo nossos altares.
Não raro, fizeste da macumba caso de polícia. A maioria dos jovens assassinados
nas periferias, na idade entre 18 e 24 anos são negros, pelo fato de serem
negros ou suspeitos de estarem a serviço das máfias da droga. A maioria deles
são simples trabalhadores.
Meu irmão
branco, minha irmã branca, meu povo:que te fiz eu e em que te contristei?
Responde-me!
Quando
com muito esforço e sacrifício consegui ascender um pouco na vida, ganhando um
salário suado, comprando minha casinha, educando meus filhos, cantando o meu
samba, torcendo pelo meu time de estimação e podendo tomar no fim de semana uma
cervejinha com os amigos, tu dizes que sou um negro de alma branca diminuindo
assim o valor de nossa alma de negros dignos e trabalhadores. E nos concursos
em igual condição quase sempre tu decides em favor de um branco.
E quando
se pensaram políticas que reparassem a perversidade histórica, permitindo-me o
que sempre me negaste, estudar e me formar nas universidades e nas escolas
técnicas assim melhorar minha vida e de minha família, a maioria dos teus
grita: é contra a constituição, é uma discriminação, é uma injustiça social.
Meu irmão
branco, minha irmã branca, meu povo: Que te fiz eu e em que te contristei? O
que fizeste com meu irmão João Alberto Freitas, covardemente assassinado a
pancadas por dois seguranças e um policial num Carrefour de Porto Alegre-RS.
Responde-me!”
Com muito
axé e amorosidade
Leonardo
Boff teólogo, filósofo e escritor
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