Marcelo Barros
Desde o começo deste mês de novembro, ocorrem manifestações e iniciativas do mês da união e consciência negra. Neste ano, por causa da pandemia, temos de nos contentar com videoconferências e eventos virtuais. Mesmo se não podemos fazer encontros presenciais, a causa do povo negro parece mais urgente do que nunca neste momento no qual o Brasil já conta com mais de 160 mil vítimas do vírus e do descuido total com o qual o governo federal trata o povo, principalmente as camadas mais pobres e vulneráveis da população.
Essa realidade de profunda
desigualdade e injustiça social se expressa também na questão racial. No
Brasil, as violências sociais atingem muito mais as pessoas negras do que as de
outra raça. Conforme o Atlas da Violência de 2019, os negros representam 75%
das vítimas de homicídio. Entre as
mulheres, vítimas de feminicídio, 61% são de jovens negras. Não é por acaso
que, segundo o IBGE, dos 10% de brasileiros mais pobres, 75% são negros. Trata-se
de um racismo, profundamente interiorizado no modo de pensar e de ser da
maioria da sociedade. É decorrência da história de quatro séculos de escravidão
institucionalizada. A quem não compreendia porque tinha de ser assim, a
resposta de muita gente era: Sem escravos, o Brasil não funciona. Dentre os
países da América, o nosso país foi o último a abolir a escravidão. Mesmo
quando isso aconteceu formalmente, em 1888, a sociedade tratou de legitimar
novas formas de servidão não reconhecidas pela lei como escravidão. Até hoje, continua enraizado no inconsciente
coletivo da sociedade brasileira um pensamento que discrimina as pessoas negras.
Elas são vistas como inferiores e são impedidas de viverem como cidadãs de pleno
direito no país e na vida civil.
Isso se chama “racismo estrutural”.
É a naturalização de ações, hábitos, situações, falas e pensamentos que já
fazem parte da vida cotidiana do povo brasileiro. Assim, se legitimam e promovem,
direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito racial. No Brasil, isso
atinge mais especificamente os povos indígenas e a população negra.
Este racismo toma a cara de racismo
ambiental quando “naturalmente” são as pessoas negras que têm de conviver com
as áreas de natureza degrada e com as consequências mais violentas da
destruição ecológica. Se a proximidade de uma usina nuclear se tornar área de
risco serão comunidades negras que poderão habitar ali. Se no campo uma empresa
usa agrotóxicos que atingem a saúde humana, como que “por acaso”, os mais
atingidos serão índios e negros.
E como não podia deixar de ser o
racismo tem também uma cara religiosa. O racismo religioso está por trás do
preconceito muito espalhado em grupos cristãos fundamentalistas de que as
religiões negras são idolátricas e até demoníacas. A cada dia, no Brasil, um
centro de Umbanda ou templo de Candomblé é atacado, invadido e às vezes até
depredado. E essa perseguição é perpetrada por grupos que se dizem cristãos e
afirmam agirem em nome de Jesus.
Nesta semana, o 20 de novembro como
dia nacional da união e consciência negra nos lembra a imensa contribuição das
culturas afrodescendentes na construção da identidade brasileira, em campos
como a economia, alimentação, arte e relação com a natureza. As comunidades
negras, assim como as indígenas, são mestras de resistência. As tradições
espirituais afrodescendentes foram fundamentais
para fortalecer as pessoas e comunidades negras na consciência de sua
dignidade, na coesão comunitária e na sua luta cotidiana da vida.
Precisamos reavivar sempre entre
nós a memória do quilombo dos Palmares, massacrado pelo poder colonial.
Lembramos a figura simbólica de Zumbi dos Palmares, cuja cabeça foi exposta em
praça pública no Recife no 20 de
novembro de 1695. Hoje, o Brasil, país que tem a segunda maior população negra
do mundo, parece uma imensa senzala que queremos transformar no grande Quilombo
Brasil.
As tradições religiosas afro descendentes têm
sido as mais fieis guardiães da dignidade e da liberdade das comunidades
negras. Para as comunidades cristãs da primeira geração, Paulo escreveu: “É para que sejamos livres que Cristo nos
libertou” (Gl 5, 1. 13). “Onde está o
Espírito de Deus, aí tem de haver liberdade” (2 Cor 3, 17).
Marcelo Barros, monge
beneditino e escritor, autor de 57 livros dos quais o mais recente é
"Teologias da Libertação para os nossos dias", Ed. Vozes, 2019. Email: irmarcelobarros@uol.com.br
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