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sábado, 7 de novembro de 2020

SUJEITO E IDENTIDADE EM NIETZSCHE

 

admiração, reconhecimento, uma indagação e uma crítica

 

 

 PADRE FABIO POTIGUAR SANTOS


PRIMEIRA PARTE

 

No filme Dias de Nietzsche em Turim, há um momento em que ele, dionisionicamente, nu, com máscaras, este homem, já flertando com a loucura, dança, dança e dança. Em seu livro A Gaia Ciência § 54,  ele escreve: “... danço minha dança  ... a dança terrestre ... festiva  da existência”.

 A Professora  Regina Maria Lopes van Balen em seu livro Sujeito e identidade em Nietzsche, parece escrever dançando motivada por sua própria experiência imediata de ser-imigrante e estudiosa do filósofo em seu doutorado e lança perguntas a ele sobre o sujeito e sua identidade. Em seu estudo e em sua vivência, Van Balen, parece aderir intelectual e existencialmente à filosofia nietzschiana.  Abandona-se a metafísica do conceito de “identidade” como algo fixo, eterno e permanente e, toma um outro caminho de considerar a vida como um devir, o ser  enquanto multiplicidade. O homem não é mais um sujeito, mas vontade de potência. Escreve a professora na página 20: “Negar o sujeito significa para Nietzsche afirmar que o indivíduo não é mais um e que esta unidade individual é ilusória. Significa isto, então, um confrontar-se com a pluralidade e a possibilidade de desempenhar outros papéis e carregar diferentes máscaras”. A impressão que tenho lendo é que no texto Van Balen  pergunta, em sua dança, ela afirma e experiência o que escreve.

A filosofia em Nietzsche seria toda plural e múltipla? Os temas centrais serão sinópticos?  A compreensão trágica da vida, a vontade de potência, o eterno retorno e o conceito de além-do-homem ( Ubermensch) são vistos todos nessa única perspectiva plural?

Nietzsche valoriza a existência de posições contraditórias no homem como algo positivo, como uma condição mesma para seu futuro desenvolvimento.  O PENSAMENTO TRÁGIGO  de Nietzsche exclui a possibilidade de uma unidade final. A vida é múltipla e pluralista: prazer e dor, vida e morte. A compreensão trágica pode ser definida como a alegria do múltiplo, a alegria do plural. No canto ébrio  de Assim  falou  Zaratustra  ele  escreve:“Nunca disseste sim a uma alegria?  Ah, meus amigos, então já disseram sim a uma dor? Todas as coisas estão encadeadas, emaranhadas, ligadas pelo amor?”

A compreensão trágica da vida contém também um desafio ético: ela nos convida a permanentemente  simbolizar , a destruir máscaras e a criá-las, consciente do seu caráter de máscaras. Essa concepção  afirma a necessidade de aceitar o desafio de articular, em palavra e atos, aquilo que não é completamente articulável, propõe o fim de todo fundamento fixo. Somos chamados a criar algo novo, a reconhecer também o caráter contextual e diferenciado de todas as verdades e significados simbólicos que a realidade nos manifesta.

Também é assim nessa ótica plural que um dos conceitos mais complexos da obra de Nietzsche, A VONTADE DE POTÊNCIA significa a vida mesma, sem “identidades estáveis”. Em nossa experiência de mundo  nunca nos defrontamos com algo que possa ser uno e idêntico. O ser é plural e contraditório. O “eu” é pluralidade de máscaras e impulsos. O indivíduo não tem um fundamento substancial, mas constitui-se a partir do jogo de diferentes  impulsos e forças. Assim, a vida, enquanto pluralidade de energia e forças se direciona em todos os sentidos: ascendentes, descendentes, verticalmente e horizontalmente. Me encontro em meio as coisas perdidas?

Assim com a compreensão trágica da vida e a vontade de potência, o ETERNO RETORNO  é diversidade, é um vir a ser, é devir. O tempo é para Nietzsche o que está determinado e que simultaneamente está em aberto, aquilo que foi decidido mas também aquilo que pode ser decidido, passado e futuro, necessidade e liberdade, duração e eternidade. O tempo é experimentado sem a segurança de uma estrutura fixa e absolutamente determinada, sem um “telos”, sem a historicidade linear. O conteúdo ético do Eterno Retorno repousa num círculo.

A eternidade é agora o tempo, o tempo é agora a eternidade. A doutrina do Eterno Retorno conduz a “uma experiência múltipla”, ela é uma hipótese, uma prova, uma experiencia do prazer de dizer “sim” diante de cada momento, é uma tentativa ética. A realidade permanece marcada pela diversidade e pluralidade. Todos os princípios opostos e contraditórios devem aí permanecer e mesmo se pressupõem.

Por fim, o “UBERMENSCH” é aquele que carrega a diversidade a pluralidade de várias máscara, é como o deus Dioniso. É o “homem ativo”, o ator que desempenha vários papéis, mas sobretudo, aquele que sabe desempenhar um papel  e volta sempre mais uma vez a procurar outro papel  sem permanecer fixado numa determinada interpretação. O “Ubermensch” quer afirmar  o mundo nas suas contradições, ele se encontra se perdendo. Ele precisa afirmar a pluralidade.

 

SEGUNDA PARTE  

 

Volto à imagem do Filme e às páginas 30 e 31 do livro em questão da Professora Van Balen. Aqueles pisos mosaicos dos palácios, das casas, das ruas e dos vitrais de Turim dizem dessa fragmentação plural e múltipla. Faço pontes com o texto da Professora.

 O dionisíaco é aquele que rompe com as fronteiras. É o excesso, desmesura, o êxtase, a ruptura que destrói com o indivíduo e a subjetividade. Dioniso, deus da música e da dança (volto a imagem de Nietzsche nu e mascarado cantando e dançando dentro do quarto), é o fundamento trágico da realidade e que aponta para a pluralidade de máscaras. Na tragédia grega ele é o único herói com diferentes máscaras. O dionisíaco aponta a pluralidade e a diferença (p. 30 ).

Quem sabe a professora, dance nua e mascarada no quarto de sua casa em Bergen op Zoom? Viva não só no palco do teatro onde trabalha, mas sobretudo no anfiteatro da vida os seus mais variados papéis. O estar inserida e integrada lá, em contato com o outro, ao mesmo tempo que sente-se estrangeira, diferente.

 Dionisio aparece, quase sempre, como o estranho que coloca o homem em contato com o outro, aquele que se situa fora do nosso eu – consciência que se encontra abraçada à lógica. O homem pode aparecer como um estranho para si mesmo. Dioniso é descrito, em O nascimento da tragédia, na sua dubiedade, na sua ambiguidade: ele é vida e morte, dor e prazer, luz e escuridão, que se excluem ao mesmo tempo que se pressupõem. Essa duplicidade paradoxal presente no homem e na realidade não é verdadeiramente aceita e reconhecida por nós. Preferimos uma verdade única.  Esta aceitação da duplicidade é, para Nietzsche, condição mesma para o aparecimento de um tipo elevado de homem. O superhomem só pode existir a partir da capacidade de afirmação desta relação de tensão ( p.31 ).

É realmente fantástica a filosofia de Nietzsche e, no caso específico esse estudo sobre a pluralidade como constituinte do “sujeito” e sua “identidade”. Vejo nos escritos de Nietzsche, mais do que pura especulação filosófica, uma espécie de autobiografia, como ele mesmo parece insinuar  em sua obra   Para Além do Bem e do Mal § 6 : “Aos poucos se evidenciou para mim o que toda grande filosofia foi até o momento: a autoconfissão do seu autor”. Nietzsche é, e não só sua filosofia, essa pluralidade.

 

 UMA INDAGAÇÃO

 

Como Dioniso é vida e morte, dor e prazer, luz e escuridão, essa duplicidade paradoxal e contraditória ao mesmo tempo relacional, por que Nietzsche exclui dessa tensão-relação Deus e Homem, sagrado e profano, divino e humano, terra e céu, imanente e transcendente já que, se por um lado, se excluem, por outro se pressupõem?

 Experimento, e muitos outros também, uma mística que não é alienada nem alienante. Creio que não vale só o que pensa, sente, faz e escreve Nietzsche. Por que seria ele mais importante do que um pajé e sua relação pessoal e tribal com Tupã? 

 Na minha dança dionisíaca, sinto e percebo não só poeira de terra ou lama de barro nos meus pés, como também pó de nuvens e pedacinhos de estrelas. Sou um humano, demasiado humano. Divino, demasiado divino. Seríamos, pois esse ser e existir esticado entre a infinidade do céu e a amplidão da terra? Plural?

 

Por fim, faço uma crítica.

 

A pluralidade não nega a unidade. Não seriam a mulher e o homem convidados, em meio as suas contradições e paradoxos, lágrimas e sorrisos, a viver a unidade na pluralidade e a pluralidade na unidade? A pessoa toda fragmentada não corre o risco de adoecer psicosomaticamente?  Não estaríamos correndo o risco de rachar-nos, quebra-nos. Tratar-se-ia, então de aprender a conviver cotidianamente com a realidade e não de permanecermos na ilusão? Fragmentos e integridade. Unidade não é evidentemente uniformidade.

 Para Nietzsche “viver é correr riscos”. Se eu parar um momento e considerar o que está contido no ato de correr, percebo que quando corro, coloco primeiro um pé, depois o outro no chão, o que me deixa por um segundo sem equilíbrio; em seguida, recupero-o de novo. É um risco correr, mas só quando tenho a ousadia de perder meu equilíbrio é que o conservo. Por um lado sei que devo ficar firme, por outro, que devo mudar continuamente. Desequilíbrio e equilíbrio. Pluralidade e unidade, ainda que confusa e conflituosa, mas relacional.

 Embora desempenhemos vários papéis, coloquemos diversas máscaras, não deveríamos abandonar as aparências. Essas tantas máscaras e personagens não estão na cara, na alma e no corpo de uma única pessoa?  Prefiro aqui, para não ser parcial, mas plural, juntar a poesia de Fernando Pessoa encontrada no início do livro da Professora Van Balen, com outra poesia do mesmo Fernando Pessoa. A primeira não conhecia, a segunda está num dos personagens do poeta, no caso Alberto Caeiro. Pois Alberto Caeiro,  Ricardo Reis, Álvaro Campos, Fernando Pessoa são máscaras da mesma pessoa: Fernando Pessoa.

Se como Dionisio aprendermos a juntar e unir os opostos, na vida poderemos juntar vivencial e existencialmente as duas poesias.

 Não sei quem sou, que alma tenho.

Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo.

Sou variamente outro que não sei se existe ( se é esses outros ).

Sinto-me múltiplo. Sou um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.

Sê plural como o universo.

 A de Alberto Caeiro. “Tabacaria”

 

Fiz de mim o que não soube

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vestia era errado.

Conheceram-me logo por quem não era

E não desmenti e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi no espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que tinha tirado.

Deitei fora a máscara e dormi no vestiário

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

 Eu, em meio as minhas trevas luminosas, fraquezas forças, tristezas alegrias, Sou todo fragmentado. Mas dos cacos de vidros espalhados  fiz de mim um vitral, um mosaico. Sou todo inteiro, mesmo sem ser total.  Mas ainda que seja assim, mesmo que seja assim, mesmo assim e assim mesmo vou prazenteiro e agoniosamente, vivendo  unidade e pluralidade; pluralidade e unidade em meios a desolação e consolação da vida. Sem excluir, mas incluindo em mim, diferente doe Nietzche,  essa tensão-relação Deus e Homem, sagrado e profano, divino e humano, terra e céu.

 

PADRE FABIO POTIGUAR SANTOS

Trabalho quando estudante da Universidade Santa Úrsula 

no curso de psicologia 2002.1

 para disciplina de Introdução à Filosofia.


 Padre Fabio Potiguar Santos Capelão das Fronteiras, membro da Comissão de Justiça e Paz e coordenador da Comissão para o Ecumenismo e o Diálogo Inter- religioso da Arquidiocese de Olinda e Recife

 

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