Frei Betto
O
que me constrange, como ser humano, é ver tanta mobilização global para
combater a Covid-19 e quase nenhuma para erradicar a fome, que mata 24 mil
pessoas por dia, cerca de 9 milhões por ano. Hoje, ameaça 820 milhões de
pessoas e pode ultrapassar 1 bilhão até o fim do ano. Ainda bem que o Nobel da
Paz foi concedido este ano ao Programa Mundial de Alimentos da ONU, o que faz
soar um alerta.
Quarentena
é um vocábulo de origem bíblica. O Dilúvio
durou 40 dias e 40 noites. Antes de receber as Tábuas da Lei, Moisés jejuou
durante 40 dias e 40 noites (Deuteronômio 9,9). Quarenta anos mais
tarde, liderou a libertação dos hebreus da escravidão no Egito. A travessia dos
hebreus pelo deserto – o êxodo – rumo a Canaã, teria durado 40 anos. O profeta
Elias “caminhou 40 dias e 40 noites até o Monte Horeb, a montanha de Deus”
(I Reis 19, 8). Jesus iniciou sua missão com um retiro de 40
dias no deserto (Marcos 1,13). Após a ressurreição, permaneceu 40
dias em companhia dos discípulos (Atos dos Apóstolos 1,3). Hoje, no
ano litúrgico da Igreja Católica temos o período de Quaresma, os 40 dias que
precedem o domingo de Páscoa. E estamos no ano de 2020, cujos algarismos somam
40.
Entrei em
quarentena em março. E nela prossigo, com raras escapadas estritamente
necessárias, e tantos cuidados que me fazem parecer um escafandrista. Não que
eu sofra de hipocondria. Mas estou no grupo de risco. Aos 76 anos já me incluo
na turma (qual eufemismo usar? Melhor idade? Terceira idade?) da eterna idade,
já que me aproximo da junção desses dois vocábulos...
A
quarentena não me pesa. Na falta de comorbidade, trago importante experiência
preexistente de reclusão – os quatro anos (1969-1973) em que fui encarcerado
pela ditadura militar. E, por vocação, sou afeito à solidão e à clausura.
Prisão e
quarentena se assemelham em muitos pontos: isolamento físico, distância de
parentes e amigos, proibições e ameaças. No cárcere, de contrair doenças
infecciosas, devido às más condições de higiene; e, agora, de pegar Covid-19. A
diferença é que na prisão a chave da porta fica do lado de fora; agora, do lado
de dentro. Sou carcereiro de mim mesmo. E o segredo para bem suportar uma e
outra é não separar a cabeça do corpo, este retido e aquela virtualmente lá
fora...
A
quarentena, para quem não precisa sair à rua e se expor em aglomerações
(ônibus, metrô etc.) para garantir o pão de cada dia, é bem mais suportável que
a cadeia: alimentação saudável, livros, TV, internet, e a liberdade de
determinar a própria agenda cotidiana.
Porém,
cuidado! O inimigo é imperceptível e não conhece fronteiras. Pode vir na
embalagem de uma mercadoria ou no envelope da correspondência. Ele mede
apenas 85 nanômetros. Para se ter ideia do que isso significa, um fio de
cabelo tem 100.000 nanômetros de espessura. Para detectar o novo coronavírus,
um microscópio eletrônico precisa ampliá-lo ao menos 80 mil vezes.
Aproveitei
a quarentena para fazer o que mais gosto: meditar, ler, praticar exercícios
físicos e escrever muito. Produzi meu 69º livro, “Diário de quarentena – 90
dias em fragmentos evocativos”, que a editora Rocco fez chegar ao mercado em
meados de outubro.
Quando
cessará a quarentena? É a pergunta que todos fazemos. Ou quando voltaremos ao
“novo normal”? Depende. Para muitos, isolamento é coisa do passado.
Flexibilização geral! Sem medo de surfar nas ondas vindouras. Para outros, como
eu, quando todos forem vacinados. A mera notícia da descoberta da vacina não
será suficiente para decretar o “liberou geral”. Geral terá de ser a profilaxia
e a imunização.
E quando
surgirá a tão esperada vacina? Não me incluo entre os mais otimistas. A que
levou menos tempo para ser descoberta foi a da caxumba, 4 anos. A da ebola,
quase 6 anos. A da tuberculose, 13. A da catapora, 28. E a do HIV está na fila
de espera há 40 anos...
O que me
constrange, como ser humano, é ver tanta mobilização global para combater a
Covid-19 e quase nenhuma para erradicar a fome, que mata 24 mil pessoas por
dia, cerca de 9 milhões por ano. Hoje, ameaça 820 milhões de pessoas e pode
ultrapassar 1 bilhão até o fim do ano. Ainda bem que o Nobel da Paz foi
concedido este ano ao Programa Mundial de Alimentos da ONU, o que faz soar um
alerta.
Por que
será que combater a fome não suscita tanta mobilização quanto o combate à
pandemia? A razão denuncia a falta de ética e de solidariedade nos tempos
atuais! Ao contrário da Covid, a fome faz distinção de classe. Mata apenas os
mais pobres. E pensar que somos mais de 7 bilhões de habitantes deste planeta
que produz alimentos suficientes para 12 bilhões de bocas! Portanto, comida não
falta. Falta justiça!
Assessor da FAO para soberania alimentar e educação
nutricional, Frei Betto é autor de 69 livros, editados no Brasil e no
exterior. Você poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org Ali os
encontrará a preços mais baratos e os receberá em casa pelo
correio.
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