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quinta-feira, 15 de junho de 2017

FRANÇOIS HOUTART E MIGUEL D’ESCOTO, SERVOS DOS OPRIMIDOS


Por Frei Betto



       François Houtart transvivenciou no último 6 de junho, no Equador. Tinha 92 anos, e o entusiasmo revolucionário de um jovem de 20. Nosso último encontro foi em março deste ano de 2017, quando fiz uma série de palestras em Quito a convite do presidente Rafael Correa. François me acompanhou todo o tempo. Fomos juntos a Pucahuaico, onde se encontra enterrado o corpo de monsenhor Leônidas Proaño, bispo indígena identificado com a Teologia da Libertação. A capela, aos pés do vulcão Imbabura, estava repleta de índios e gente do povo. Houtart presidiu a celebração eucarística.

No dia seguinte, Rafael Correa nos ofereceu um almoço. Havia sido aluno de François em Lovania, Bélgica, onde durante anos Houtart formou, em Sociologia e Ciências da Religião, alunos oriundos da periferia do mundo, entre os quais o colombiano Camilo Torres e o brasileiro Pedro Ribeiro de Oliveira, que nos relata:

       “Em 1975, voltei à Bélgica para iniciar o doutorado. A primeira reunião de trabalho com Houtart, meu orientador, desmontou tudo que eu tinha preparado para a tese sobre catolicismo popular. Disse que ela era insuficiente, porque não trazia uma explicação sociológica. Para aumentar meu espanto, acrescentou: ‘Como você não deve ignorar, só a teoria marxista é realmente explicativa. As outras são apenas descritivas.’ Saí dali atordoado, sem entender como um padre, que havia sido perito no Concílio, tendo colaborado até na redação da Gaudium et Spes, havia se tornado marxista sem deixar a Igreja. Aos poucos fui entendendo: ele fazia oposição ativa à guerra dos EUA contra o Vietnam, e foi assim que descobriu, na teoria da luta de classes, um instrumento teórico capaz de elucidar o que estava em jogo naquela guerra, nos movimentos anticolonialistas da África e da Ásia, e nas ditaduras latino-americanas. O melhor é que me convenceu de uma vez por todas. Na última vez em que participamos juntos de um congresso de Sociologia da Religião, éramos os únicos sociólogos a usar o instrumental marxista para explicar fatos religiosos. Brinquei com ele, pedindo que demorasse bastante a morrer, para eu não ficar sozinho usando Marx para entender a religião...”

       François era alto, tinha os olhos muito claros e sorria com facilidade, mesmo ao manifestar, no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2005, pertinentes críticas ao governo brasileiro na presença do presidente Lula. De fala pausada, seu raciocínio científico era didático, pois abandonara a Europa para viver na América Latina e se dedicar aos movimentos sociais de países de nosso continente, da África e da Ásia. Em 2016, assessorou o congresso nacional do MST, em Brasília.

       Convivemos em várias ocasiões ao participar de eventos no Brasil, em Cuba, na Nicarágua e na Bolívia. Eu sempre me perguntava como um homem acima dos 80 anos encontrava tanto ânimo para viajar mundo afora, muitas vezes carregando uma pesada mala com livros de sua autoria, sem jamais se queixar de se hospedar em uma tenda indígena no alto dos Andes, em um assentamento do MST no Brasil ou em uma cabana de plantadores de arroz no Vietnam.

       Em seus anos de estudo em Roma, François teve como colega um jovem chamado Karol Wojtyla. Contou-me que o seminarista polonês tinha obsessão por aprender idiomas. Aproveitava as férias para se deslocar para as regiões da Europa nas quais lhe fosse ensinada uma nova língua. Certa ocasião, acompanhou Houtart até a Bélgica, interessado em aprimorar seu francês e conhecer o flamengo.

Uma noite, Wojtyla retornou à casa sob forte chuva. Seus sapatos poloneses haviam sido arruinados pela água. François encontrou um seminarista belga que, por calçar o mesmo número do polonês, pode lhe ceder um novo par. Décadas depois, já sacerdote, o doador dos sapatos quis ser recebido pelo papa João Paulo II. A burocracia alegou falta de agenda. Ao encaminhar uma nota ao pontífice, recordando os sapatos, as portas do Vaticano se abriram.
Em 2016, Houtart me convidou ao Equador para um seminário sobre a encíclica socioambiental Louvado Sejas, do papa Francisco. Do trabalho conjunto naqueles dias resultou a publicação, assinada por nós dois, Laudato Si - Cambio Climático y Sistema Económico (Quito, Centro de Publicaciones, Pontifícia Universidad Católica del Ecuador, 2016).

Na viagem que, em março último, fizemos à região andina do Equador, François me narrou sua participação, aos 15 anos, na resistência contra a ocupação nazista na Bélgica. Ele e um amigo decidiram fabricar uma bomba caseira para descarrilar um trem de soldados de Hitler. Não tiveram êxito e o atentado lhe valeu um puxão de orelhas da mãe. Contou-me ainda que tinha mais de dez irmãos. Há uma década, com todos vivos, se reuniram para comemorar os 1.000 anos da soma de suas idades.

      Na visita de João Paulo II a Cuba, em janeiro de 1998, Fidel convidou Houtart para assessorá-lo, em companhia de Pedro Ribeiro de Oliveira, do teólogo italiano Giulio Girardi e de mim. Foram dias de intenso trabalho comunitário.

Formação operária

      Em 2016, François me remeteu um interessante relato sobre a sua formação, que aqui transcrevo em espanhol:
       “Durante mis años de seminário en Malines (Bélgica), participaba en numerosas reuniones de la JOC (Juventud Obrera Católica) en Valonia y en Bruselas, durante las vacaciones. Ahí fue donde descubrí  la situación de la clase obrera de esa época (1944-1949). Justo después de la postguerra, el esfuerzo de reconstrucción de Europa estuvo acompañado por una sobre explotación del trabajo, y las condiciones sociales de los jóvenes eran particularmente escandalosas.”

“Los congresos de la JOC regionales y nacionales permitían informarse sobre el marco más general de la situación económica y social. Además, pude visitar diferentes fábricas y minas de carbón. La JOC belga me puso en contacto con el movimiento en Francia, en los Países Bajos, en Inglaterra, en Alemania, en España, y poco a poco la dimensión internacional se convirtió también en una parte importante de mi introducción en el mundo del trabajo.”

“En numerosas ocasiones, me entrevisté con Monseñor Cardijn (fundador de la JOC) y estuve muy impresionado por su combatividad, su insistencia sobre la incompatibilidad entre la injusticia social y la fe Cristiana, y sobre su conocimiento de la vida de los jóvenes trabajadores. Descubrí también el método pedagógico, el no partir de arriba imponiendo un saber, sino de abajo, descubriendo la realidad: ver, juzgar, actuar.”

“Esta experiencia me incitó a pedir, después de mi ordenación sacerdotal, iniciar estudios de Ciencias Sociales y Políticas en la Universidad Católica de Lovaina. Me pasé 3 años ahí, quedándome en permanente contacto con la JOC, siguiendo ciertas secciones, viajando por Europa para encuentros con el movimiento. Mi tesis de licenciatura estuvo dedicada al estudio de las estructuras pastorales de Bruselas, habiendo descubierto, por una parte, su ausencia en los medios obreros, y por otra la identificación de la cultura religiosa cristiana con la cultura burguesa, creando un divorcio con la clase obrera y, particularmente, los jóvenes.”

“Durante el último año de mis estudios en Lovaina, fui el capellán del Hogar de los Jóvenes Trabajadores en Bruselas, un servicio de la JOC para los jóvenes que habían estado confrontados a la Justicia de la Juventud.”

“En el plan europeo, es en Francia donde tuve más contactos, particularmente en la región parisina: St Denis y otros suburbios. Me hice amigo de algunos sacerdotes obreros, e incluso me quedaba a vivir en sus casas.”

“Después de conseguir una beca por estudios para la Universidad de Chicago (1952-1953), con el fin de continuar la Sociología Urbana y la Sociología de la Religión, residí en una parroquia donde trabajaba al capellán de la JOC de la ciudad. Fue también la ocasión de bastantes encuentros con la JOC de los Estados Unidos. Durante las vacaciones de Pascua de 1953, fui a La Habana para asistir a un Congreso de la JOC de América Central y del Caribe, donde estuvo presente Cardijn. Pude tener reuniones con secciones locales y entrevistarme con el  capellán nacional de Cuba. Esto me metió en la problemática latinoamericana, que deseaba conocer desde hacía tiempo. Después del congreso acompañé al capellán de la JOC de Haití a Puerto Príncipe, y me pasé una semana en el país en visitas y reuniones con el movimiento haitiano.”

“Luego di clases durante un semestre en la Universidad de Montreal, y también participé en actividades del movimiento. De ahí me trasladé de nuevo a América Latina y durante 6 meses recorrí casi todos los países, desde México hasta Argentina, siempre con la JOC, gracias a los contactos conseguidos durante los congresos internacionales. Fue una gran escuela el descubrir el continente desde abajo. Una vez más, descubrí los abismos entre los ricos y los pobres y la explotación increíble de los jóvenes urbanos y rurales. Fui golpeado por el papel de los sacerdotes  apegados al movimiento en la renovación de una Iglesia tan alejada del pueblo y tan próxima a las élites y oligarquías sociales. Eran activos en todos los campos: social, litúrgico, pastoral, bíblico. Una gran parte de estos sacerdotes pertenecían a las órdenes religiosas y bastante de ellos habían estudiado en Europa.”

“Este contacto con América Latina fue el que me hizo iniciar, en 1958, un estudio socio-religioso sobre el conjunto del continente, con equipos en cada país, varias veces con miembros de la JOC. Se terminó en 1962 y fue publicado en unos cuarenta volúmenes, lo que llevó al Consejo Episcopal Latinoamericano pedirme una síntesis en tres lenguas para distribuir en la entrada del Concilio Vaticano II al conjunto de los obispos y a acompañarle comoperitus durante los 4 años del trabajo conciliar.”

“El cardenal Cardijn me había pedido entre tanto si aceptaría ser el capellán internacional del movimiento, lo que evidentemente me interesaba mucho, pero mi obispo, el cardenal Van Roey no aprobó esta idea.”

“Después, habiendo trabajado en Asia, durante las vacaciones de la Universidad de Lovaina, donde impartía Sociología de la Religión, me puse en contacto también con la JOC en Sri Lanka, en la India, en Vietnam, en Corea del Sur, en Filipinas. Con mi colega, Geneviève Lemercinier, nos hicimos cargo de un seminario de formación para el análisis social para los militantes de la JOC de Hong Kong. En África del Sur, en pleno apartheid, participé durante 3 días en una reunión nacional con jóvenes trabajadores blancos, negros y mestizos, lo cual en principio estaba prohibido, en un convento de los Padres Oblatos, en Bloemfontein.”

“En cualquier parte, de América Latina, Ásia y África, me he reunido en los años siguientes con antiguos miembros de la JOC, tanto en los sindicatos, como en las ONG de desarrollo, o en el seno de partidos políticos progresistas y también revolucionários, como en Nicarágua o en Bolívia.”

“Las enseñanzas que sacado de la JOC han sido numerosas y fundamentales. En primer lugar, fue el conocimiento del mundo obrero, de sus luchas, de sus organizaciones. Después, fue el método: ver, juzgar, actuar, que da un marco de reflexión muy eficaz para el análisis de las realidades y para la puesta en marcha de una acción que les sea adaptada. Si estudié Sociología y si continué constantemente el trabajo de investigación, era para afinar el "ver" en sociedades muy diferentes y complejas. Esto también me permitió descubrir que se podía leer la sociedad desde arriba, pero también desde abajo, y que la opción del Evangelio era leer el mundo con los ojos de los pobres y de los oprimidos. No existe una ciencia neutra, sobre todo en el marco de las ciencias humanas.”

“La pedagogía de la JOC y su adaptación a un medio específico de jóvenes trabajadores, a menudo a duras penas alfabetizados, me ha enseñado a utilizar un lenguaje sencillo, a estructurar correctamente el raciocinio para que sea comprendido, en una palabra a bajarse del pedestal académico y también de aprender de los que tienen un saber práctico a menudo despreciado por el saber llamado "sabio".”
“Por fin, es también la JOC que me ha llevado a profundizar la dimensión social del Evangelio, y a comprender que lo que pide el Señor es el amor eficaz. No se trata únicamente de una actitud personal, sino que este amor implica la construcción de una sociedad justa y de seguir el ejemplo de Jesús en su sociedad, donde anunció los valores del Reino de Dios, el amor al prójimo, la justicia, la igualdad, la misericordia, la paz, y combatió todos los poderes opresores, económicos, sociales, políticos e incluso religiosos. No en vano murió (ejecutado) sobre la cruz.” (Quito, 01.03.16)

A transvivenciação

Nidia Arrobo Rodas, que trabalhava com François na Fundação Povo Indígena do Equador, relata os últimos momentos dele:
“Nuestro querido François se fue como vivió, con una serenidad total, entero, lúcido, diáfano, de pie.... En la víspera, luego de un Acto de Denúncia en el IAEN (Instituto de Altos Estudios Nacionales) sobre el genocídio Tamil, cenamos como de costumbre la "sopita" que tanto le gustaba y para él era imprescindible al caer la tarde tomarla en comunión en nuestra mini residencia y, como de costumbre, se fue a dormir... Claro que en su habitación siguió trabajando... No sabemos hasta que hora... Porque hasta las once de la noche aún recibimos sus emails.”
 “Al amanecer, intuimos que se ha levantado para ir a la ducha y las fuerzas le faltaron... Se ha puesto la salida de cama, se ha sentado en su sillón relax muy próximo a su cama, y con su mano en el corazón se quedó durmiendo el sueño más profundo de su vida, muy  plácidamente, sin hacer ningún ruido, muy calladito..  Un infarto masivo... A las siete y media de la mañana... se despertó en Dios.”
“Precisamente en el mes de abril fuimos al cardiólogo, a instancias mias, porque sentía que se agitaba mucho y como que le faltaba el occígeno... El cardiólogo le pidió hacerse una cirugía de la arteria del corazón, pues se había estrechado, y el marca pasos ya no respondía como hace cuatro años que se lo puso. Le dije: François, la cirugía es inminente... El optó por hacercela en Bélgica por sugerencia del mismo cardiólogo... Pero por más que le insistia, no tomó la decisión de viajar enseguida: ‘Tengo muchos compromisos, tengo que terminar la cátedra Houtart en el mes de junio y me voy’ me dijo. De nuevo le dije que era mucho tiempo de espera... Pero él era dueño absoluto de su voluntad y de sus decisiones... Optó por terminar aquí todo lo previsto y viajar en junio a  Bélgica para su cirugía, que deportivamente decía, es algo muy pequeño.”

“Con esto, tenía pasajes comprados y maletas listas, para viajar ayer (9 de junio), pero primero a Bogotá, luego una semana en Cuba, luego una semana en Brasil y llegar a finales de junio a su Bélgica...”

 “Yo sabía que él libremente optó por vivir con nosotros, se sentía feliz, vivió feliz... y pienso que en el fondo de su corazón quizó terminar aquí mismo sus días.”

 “La última celebración tuvo lugar - a pedido mio - en el IAEN, el propio miércoles, exactamente a las cinco de la tarde, día y hora en la que tenía terminar el programa de su cátedra este año.”

“Estamos desolados... Fuimos felices con su presencia jovial, llena de amistad, finura de espíritu, delicadezas y de detalles increíbles; pero al mismo tiempo sé que él fue feliz en medio de nosotros... Siempre nos lo decía y esto me llena de gozo y gratitud.”

“Sin embargo a él lo sentimos entre nosotros, el está vivo y sigue y seguirá vivo y resucitado en las luchas de liberación de todos los empobrecidos de todo el mundo, y en los dolores de parto con los que gimen los PUEBLOS INDIGENAS y nuestra Pachamama.”

“Como consta en su testamento, lo cremamos... y lo más pronto sus cenizas reposarán junto a las de su madre en su Bélgica natal.”

Miguel D’Escoto

       Dois dias depois de Houtart nos deixar, perdi outro amigo, também sacerdote e revolucionário como ele, o padre Miguel D’Escoto, falecido aos 84 anos. Ministro das Relações Exteriores da Nicarágura sandinista entre 1979 a 1990, presidiu a Assembleia Geral da ONU em 2008 e 2009. 

      Filho de diplomata, D’Escoto nasceu em Los Angeles, em 1933. Fez-se sacerdote pela congregação de Maryknoll e foi um dos fundadores da editora novaiorquina Orbis Books, que em 1977 publicou nos EUA meu livro Cartas da prisão com o título Against principalities and powers.

      Foi D’Escoto que recebeu Lula e a mim em Manágua, por ocasião do primeiro aniversário da Revolução Sandinista, em julho de 1979. Levou-nos à casa de Sérgio Ramirez, então vice-presidente do país, na noite de 19 de julho, quando então conhecemos e conversamos longamente com Fidel Castro.

      Em janeiro de 1980, ele veio a São Paulo, em companhia de Daniel Ortega, presidente da Nicarágua, participar do primeiro congresso mundial da Teologia da Libertação. Foi um dos oradores da Noite Sandinista, no TUCA, teatro da Universidade Católica de São Paulo.

      No domingo, 29 de novembro de 1981, em Manágua, reencontrei-o em sua casa, que pertencera ao executivo que presidira o Banco Central da Nicarágua à época da ditadura Somoza. Ali se encontravam Daniel Ortega; o secretário-geral da Frente Sandinista de Libertação Nacional, René Nuñez; os padres Gustavo Gutiérrez, Pablo Richard, Fernando Cardenal, Uriel Molina, e o ministro do Bem-Estar Social, padre Edgard Parrales.

      D'Escoto acabava de retornar do México e descrevia em detalhes as recentes conversas sobre a América Central entre o presidente López Portillo e o general Alexander Haig, secretário de Estado dos EUA. Na atenção dos convivas, uma indisfarçável satisfação pela eficiência da espionagem sandinista dentro do governo mexicano.

      Falamos da conjuntura da Igreja, da campanha internacional contra a Revolução e sobre a Juventude Sandinista, agora aos cuidados de Fernando Cardenal. Preocupava-me o caráter mecanicista do marxismo divulgado entre os jovens sandinistas, mera apologética de antigos manuais russos. Insisti na importância de os sacerdotes no poder - D'Escoto, Parrales e os irmãos Cardenal - explicitarem publicamente sua vida de fé. Temia que projetassem uma imagem mais política que cristã.

      No sábado, 16 de novembro de 1984, em Manágua, retornei à casa de D'Escoto. Perguntei-lhe por que não fora à reunião da OEA em Brasília. “Para não valorizar a OEA” – respondeu -, “que continua servindo de instrumento nas mãos dos Estados Unidos, contra a soberania dos povos da América Central.”

      Celebramos a eucaristia sob o alpendre de vime do quintal. Lemos e meditamos o evangelho de Mateus 4, 25 ss. D'Escoto desabafou: “Estou com o corpo e a mente cansados, pois já não acompanham o ritmo acelerado que as circunstâncias me impõem. Sonho em desfrutar da solidão, em ter tempo para mim e não ter que ficar sempre atento ao telefone. No entanto, sei que, por enquanto, isso é apenas um sonho. De minha intimidade com Jesus arranco as forças que me sustentam.”

      Ao fim da celebração, me disse: “Quero duas coisas de você: leio com muito gosto o último livro de Dom Pedro Casaldáliga. Soube que, em breve, ele irá à Espanha. Peça-lhe que, antes, passe por Nicarágua. E insista com Dom Paulo Evaristo Arns para que venha à posse de Daniel, dia 10 de janeiro próximo.

      “Por que você não liga agora para Dom Paulo?” - sugeri.
      Tentamos, mas o cardeal de São Paulo não se encontrava em casa.
      Onze dias depois dei pessoalmente o recado a Dom Paulo Evaristo Arns. No ano seguinte, Dom Pedro Casaldáliga visitou a Nicarágua.

      Em março de 1986, reencontrei-o em Havana, em companhia de Rosario Murillo, atual vice-presidente da Nicarágua e esposa de Daniel Ortega, e de Manuel Piñeiro, chefe do Departamento de América do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba. Falamos longamente sobre a situação da Nicarágua e do apoio explícito que os bispos Obando e Vega davam à política agressiva de Reagan. D'Escoto era de opinião que os padres, religiosos e leigos deviam enfrentar corajosamente o arcebispo de Manágua, partindo, se necessário, para a desobediência eclesiástica. Isso lhe valeu, posteriormente, a suspensão, por parte do papa João Paulo II, do exercício de seu sacerdócio, medida revogada pelo papa Francisco.

      Em janeiro de 1989, em Havana, nos vimos na comemoração dos 30 anos da Revolução Cubana. Ele se entreteve em longa conversa com Leonardo Boff sobre a teologia da Trindade. “É a base da minha espiritualidade”, ouvi-o dizer. E lamentou a situação de seu país: “O mais duro para o povo da Nicarágua não é a agressão americana, mas a falta de apoio da Igreja.”

      Tivemos outros encontros posteriores, como na época em que presidia a Assembleia Geral da ONU, o que o levou a descrer inteiramente da eficácia dessa importante instituição, manipulada pelos interesses da Casa Branca.

      Com o desaparecimento de François Houtart e Miguel D’Escoto perdem a América Latina, a causa dos pobres e a Teologia da Libertação. Deixam-nos um legado de como viver a fé cristã em um mundo dividido entre poucos biliardários e multidões de miseráveis, e do que significa ser discípulo de Jesus nesse conturbado início do século XXI.

Frei Betto é escritor, autor de “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco), entre outros livros.

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