por Eduardo Hoornaert
Entre as não poucas surpresas que o
Papa Francisco causa, há uma que merece particular atenção: sua aproximação com
as ideias do apóstolo Paulo. Embora o atual papa não costume citar São Paulo,
vale a pena prestar atenção ao fato que ambos militam a favor dos
imigrantes. Na sua Carta aos Romanos, Paulo abre perspectivas de vida ao
imigrantes orientais em Roma, assim como Papa Francisco se empenha a criar
espaços de vida aos imigrantes na Europa de hoje. É nesse sentido que apresento
a Carta aos Romanos neste trabalho. Você verá sem dificuldade que os pontos de
comparação com as situações que hoje, tais quais são denunciadas pelo atual papa,
assim também com as iniciativas no sentido de remediar a essas situações, são
impressionantes.
Roma, uma cidade de imigrantes.
No tempo do surgimento do
cristianismo, Roma é uma encruzilhada de povos. O bispo Irineu, no século II,
escreve acertadamente: ‘para lá tudo converge’. Cidade de perto de um milhão de
habitantes (um número enorme para a época), a Capital do Império é o local para
onde se dirigem imigrantes, principalmente provenientes das províncias
orientais, em busca de trabalho. Em Roma se fala grego, uma língua adotada
pelos que vêm da Síria, da Ásia Menor, da Capadócia, do Egito e dos diversos
países em torno do Mar Mediterrâneo. Pois o grego de Roma é como o inglês hoje:
uma língua mal falada (a ‘koinè’), mas que possibilita a comunicação entre as
‘nações’. Só na administração, no exército e entre os imigrantes provenientes
da África se fala latim.
A influência de Roma sobre esses
povos das províncias nunca foi construtiva, como nos lembra o historiador
inglês Toynbee. Roma nunca apresentou ideias realmente novas, nunca teve
carisma, sempre manipulou, dominou, imperou. A verdadeira vida cultural e
espiritual provém das cidades-estados do Oriente, como Atenas, Antioquia,
Alexandria, Éfeso, Corinto, Esparta, etc. Cidades helenizadas, decerto, mas
onde pulsa a vida dos povos originários. Roma apenas traz o patriarcalismo
(patria potestas; pater familias), a ‘Paz Romana’ (a paz como ordem imposta,
tranquilidade dos submissos, sob o jugo dos poderosos) e o famoso ‘Direito
Romano’, indispensável para que a Paz Romana possa funcionar. Um direito não
baseado na democracia grega, mas de caráter corporativista, patriarcal e
autoritário.
Entre o luxo e o lixo.
A sociedade romana, sem classes no
sentido atual da palavra, funciona através do‘apadrinhamento’. Para sobreviver,
é preciso ter um ‘padrinho’, do qual se espera receber favores. O próprio
estado romano é um grande e beneficente padrinho, que escolhe seus
apadrinhados. O número fechado dos que são beneficiados em Roma com
distribuições gratuitas de ‘pão e circo’ (‘panem et circenses’) é restrito a
não mais de 200.000 pessoas, ou seja, 20 % da população da megacidade. Os
demais são os chamados ‘humildes’: escravos, libertos, infames (pessoas sobre
as quais não convém falar em ambientes bem-educados, como gladiadores,
bestiários, dançarinos, cantores, prostitutas, mulheres, crianças), cardadores
(que cardam a lã e o linho), sapateiros, pisoeiros (que trabalham nos moinhos
de pisoar os panos e os couros), carpinteiros, os que estão no curtume.
Eles vivem
nas estreitas e fedorentas ‘insulae’ (favelas) da grande cidade. Pois,
como se diz, para viver em Roma é preciso abrir os olhos (para contemplar os
esplendores de templos e palácios) e tapar o nariz (para poder suportar o
fedor). É preciso, sobretudo, reprimir o sentimento do coração ao ver o
abandono em que vive a imensa maioria. Roma vive entre o luxo e o lixo. Para
gostar de Roma, é preciso manter o coração insensível diante dos sofrimentos do
‘povo profano e vulgar’ e não interferir nos mecanismos que fazer funcionar a
sociedade: dinheiros públicos drenados para mãos privadas, ganhos oficiais
investidos em grandes propriedades de terra, a taxação regressiva, que cai com
enorme peso sobre os ombros dos artesãos, comerciantes e agricultores, enquanto
os ricos praticamente não pagam impostos.
O movimento de Jesus em Roma.
O cristianismo emergente é um dos
ingredientes do ‘caldeirão romano’, um conglomerado de diversas correntes
(chamadas em grego ‘heresias’) que se formam em torno de mestres apreciados.
Nas décadas 130-160, por exemplo, em Roma convivem seguidores de Valentino, que
vem do Egito, de Marcião, proveniente da Capadócia, de Taciano da Mesopotâmia e
de Justino da Palestina. Ireneu é de Esmirna e é em Roma que Tertuliano, o
africano, encontra o montanismo, um movimento proveniente da Frígia.
Não podemos perder de vista que, em
Roma, esses militantes das diversas correntes do movimento de Jesus vivem todos
‘em paróquia’, um termo grego que indica os que vivem sem casa, na rua,
entregues à própria sorte. A reação do movimento cristão diante da ‘paróquia’ é
explicada pelo historiador J. H. Elliott em seu livro ‘Um Lar para quem
não tem Casa, Interpretação sociológica da Primeira Carta de Pedro’ (Edições
Paulinas, São Paulo, 1985). Naquela carta, atribuída a Pedro, se explica como
os seguidores de Jesus vivem seu ‘tempo de paróquia' (1Pd 1, 17), fora de sua
pátria, sem cidadania romana (2, 11), sem estabilidade, sem segurança.
Para essas pessoas, o movimento procura antes de tudo criar um ‘lar’, um
abrigo social, um apoio emocional, uma nova cidadania, um recanto de paz e
fraternidade no meio da cidade cruel, uma ‘casa de Deus para quem não tem casa’
(2, 11 comparado com 2, 18): Deus oferece sua casa aos que não têm casa (2, 5 e
4,17). Os que são forçados a viver como ‘domésticos’ (2, 18) em famílias bem
situadas, encontram na comunidade cristã um aconchego. Ali se sentem em casa, à
vontade. A Carta recomenda: ‘aproveitem do tempo de sua paróquia para levar uma
vida exemplar no meio dos que não conhecem a Deus’ (2, 12). Esse modelo
‘paroquiano’ não só funciona em Roma, mas igualmente em Corinto (Carta de
Clemente), na Síria (Didaqué e Carta de Tiago), na região do Mar Egeu (Carta a
Timóteo), em Alexandria (Carta de Barnabé), em diferentes cidades da Ásia Menor
(Cartas de Inácio de Antioquia).
A Carta aos Romanos.
É dentro desse contexto imigrante que
se situa a Carta aos Romanos (doravante Rm). Ao longo da história, grandes
inteligências se debruçaram sobre essa Carta e a interpretaram sob diversos
ângulos, sem dar a devida atenção à realidade da imigração dentro da qual se
situa a Carta. Assim, Agostinho (século V) vê na Carta uma confirmação de sua
doutrina do pecado original (Rm 5), Anselmo de Cantuária (século XI) enxerga
nela a doutrina do sacrifício de Cristo em benefício de toda a humanidade (Rm
3, 21-26), enquanto Lutero (século XVI) nela se baseia para afirmar que ‘o
justo se justifica pela fé’ (Rm 1, 17) e combater uma igreja baseada em
indulgências, romarias e devoções.
Não podemos dizer que essas leituras
históricas devem ser descartadas, mas é bom ficar atento ao fato que elas, em
sua maioria, são baseadas numa leitura ‘fora do contexto’. Retira-se uma frase,
por vezes uma expressão ou mesmo uma palavra, e com isso se procura enfocar um
determinado problema contemporâneo do comentarista, sem prestar a devida
atenção à intencionalidade própria do autor de Rm. Vale, então, se colocar a
pergunta: como Paulo chegou à ideia de escrever os núcleos do movimento de
Jesus existentes em Roma? Qual o ímpeto que o leva a escrever um texto tão
impactante? Qual a ideia que o impulsiona?
Paulo é informado acerca da situação
do movimento em Roma.
No ano 54, residindo em Corinto,
Paulo se prepara para viajar à Espanha, e pensa passar por Roma onde pretende
visitar as comunidades que ali conseguiram se formar. Nisso, recebe a visita de
um casal, Aquilas e Prisca, que acaba de chegar de Roma e traz as últimas
notícias (Rm 16, 3-4). A conversa lhe rende muito, pois o casal informa acerca
da política do jovem Imperador Nero em relação aos judeus que, alguns anos
antes, tinham sido banidos da cidade de Roma por seu padrasto Claudio. Parece
que o novo Imperador quer sinalizar que Roma acolhe sem distinção todas as
‘nações’ (leia: os imigrantes). Contudo, acrescentam Aquilas e Prisca, o gesto
do novo Imperador não vem acompanhado de nenhum programa social que facilite a
integração desses pobres e desamparados, que afluem em grande número à capital.
Abandonados à própria sorte, eles vagam por ruas e alamedas, arranjam-se em
praças públicas e cometem furtos para sobreviver. Então as forças de repressão
entram em campo e reprimem os imigrantes do Oriente, sob os aplausos dos
habitantes bem situados.
Essa situação, dizem Aquilas e
Prisca, atinge em cheio a congregação de militantes do movimento de Jesus que
conseguiu se estabelecer em Roma. Os arranjos de Nero, ao mesmo tempo em que
facilitam o afluxo de imigrantes judeus na congregação de Jesus, aumentam nela
determinadas tensões internas já existentes. Acirra-se o tradicional
desentendimento entre três segmentos de militantes no movimento: judeus que
falam aramaico, judeus que se expressam em grego (chamados ‘helenistas’) e não
judeus, chamados ‘gregos’ ou ‘gentios’. Por causa de suas experiências no
Oriente, Paulo entende perfeitamente essa problemática e percebe, com pesar,
que um problema que afeta desde muito o movimento no Mediterrâneo oriental, na
Síria e na Ásia, agora se manifesta em Roma também. É um problema endêmico do
mundo de imigrantes.
Paulo toma posição.
As informações fornecidas por Aquilas
e Prisca reforçam em Paulo a convicção que o movimento de Jesus está assentado
em premissas diametralmente opostas aos planos e arranjos da administração do
Império Romano. Essa administração pretende difundir a Paz Romana, enquanto o
movimento propugna o ‘universalismo das nações’. O impressionante consiste no
fato que um cidadão romano (Paulo de Tarso) se projeta, na Carta aos Romanos,
como líder anti-romano, ou seja, opositor da ideia da Paz Romana, do Direito
Romano, do patriarcalismo romano. Ele entende perfeitamente aonde a
administração romana quer chegar quando chama os agrupamentos esparsos de
imigrantes em Roma indiscriminadamente pelo termo genérico ‘nações’ (gentios).
Gregos, frígios, macedônios, gálatas, capadócios, judeus etc., todos são
tratados como sendo parte de ‘nações’ a serem assimiladas pela política
unificadora da Paz Romana.
Pois o relacionamento do Estado
Romano com esses segmentos da sociedade é basicamente de ordem repressiva.
Paulo sabe como vivem as diversas ‘nações’ numa metrópole como Antioquia. Ele compreende
que as coisas se passam mais ou menos da mesma forma em Roma. Ele sabe que
todas essas ‘nações’ enfrentam basicamente os mesmos problemas, compartilham os
mesmos sofrimentos e esperanças. Todas elas vivem ‘em exilio’ (em ‘paróquia’:
Rm 15, 18), muitas vezes sem teto, sem amparo por parte das autoridades e sem
segurança. Os imigrantes são normalmente escravos ou servidores subalternos.
Paulo compreende que o mais importante, para abrir um horizonte de vida para
essas populações sofredoras, consiste em dar às ‘nações’ um senso de coesão,
por cima das diferenças. Para Paulo, trata-se de estabelecer um relacionamento
dinâmico com o universo dos imigrantes, judeus e não judeus. Nada de discutir
assuntos que possam dividir os grupos entre si, nada no sentido de insistir em
diferenças entre línguas, religiões, usos e costumes, nada no sentido de
defender um segmento (os judeus, por exemplo), em detrimento de outro. Para
Paulo, defender ‘as nações’ significa dinamizar a coesão entre todos os grupos
de imigrantes. O povo de Deus não é etnia, religião ou língua. É a união
existente entre os mais diversos grupos étnicos, linguísticos e religiosos.
A (oculta) linguagem irônica da Carta
aos Romanos.
Paulo não pode falar em termos
explícitos do plano que tem em mente, já que a oficialidade romana exerce um
controle contínuo sobre o universo dos imigrantes. Ele opta por tomar de
empréstimo, dando-lhes um discreto toque irônico, terminologias costumeiras do
linguajar palaciano imperial. Ele fala em ‘Jesus Cristo Nosso Senhor’, uma
expressão palaciana que insinua o seguinte: Jesus é o verdadeiro Senhor das
nações, não Nero. A recomendação no sentido de ‘obedecer ao Nosso Senhor Jesus,
Ungido, Filho de Deus, nosso Pai’ (Rm 15, 18) deixa entender algo assim: ‘não obedeçam
ao Senhor Nero, Filho de Deus, Pai das nações’. ‘Olhar para Jesus’ é o mesmo
que ‘não olhar para o Imperador’.
Esse modo de interpretar formulações
clássicas do linguajar cristão não nos é costumeiro e pode parecer estranho.
Mas é acompanhar o que se escreve hoje sobre esse particular, principalmente
entre autores norte-americanos, que interpretam Rm a partir da estratégia
seguida por militantes de Jesus dentro de grandes cidades do Império Romano. Se
você quiser saber mais sobre esse tema, leia, por exemplo: Crossan, J.D.
& Reed, J.L., Em Busca de Paulo. Como o apóstolo de Jesus opôs o Reino de
Deus ao Império Romano, Paulinas, São Paulo, 2007, ou ainda: Horsley, R.A., Paulo e o Império, Paulus, São Paulo, 2004.
O universalismo militante.
Numa frase memorável da Carta aos
Gálatas, Paulo expressa de forma lapidar o que, em sua opinião, tem de ser o
comportamento entre as ‘nações’:
Não há judeu ou grego,
senhor ou escravo,
homem ou mulher,
somos todos unidos em Jesus, o Ungido (Gl 3, 28).
A frase é de grande ousadia. Numa
sociedade em que pessoas do sexo masculino têm a seu serviço um ou mais
escravos e ‘governam’ as suas mulheres, falar em ‘grego, mulher, escravo’ é
coisa ousada. É confrontar o ‘forte’ (judeu, macho, senhor) com o ‘fraco’ (grego,
mulher, escravo). Gerd Theissen aprofundou esse tema num texto intitulado ‘Os
Fortes e os Fracos em Corinto’ (Theissen, G., Sociologia da Cristandade
primitiva, Ed. Sinodal, São Leopoldo, 1987, 133-147). Ali se vê que o
universalismo de Paulo é um universalismo ‘desordenado’ (a expressão é do
filósofo esloveno Slavoj Zizek), ou seja, irreconciliável com os ordenamentos
da sociedade estabelecida. Um universalismo militante.
É fazendo esse tipo de considerações
que descobrimos o tema central da Carta aos Romanos. Ele vai enunciado bem no
início da carta, precisamente no versículo 16 do primeiro capítulo:
Não tenho vergonha da mensagem:
Poder de Deus que intenciona a
salvação de todos que lhe dão fé
O judeu em primeiro lugar, mas o
grego também.
Eis o ponto: equiparar judeu e grego,
grego e bárbaro (Rm 1, 14), sábio e ignorante, com Lei ou sem Lei, circunciso
ou incircunciso, observador ou não do sábado, frequentador ou não do Templo.
Equiparar todos que ‘vivem na fidelidade’ (Rm 1, 17). Eis o leitmotiv,
a ideia que impulsiona. Quem lê Rm atentamente percebe que os trechos, tão
diversificados entre si, em forma de espiral, de diálogo ou de desabafo, na
realidade giram todos em torno da questão do universalismo militante. Foi isso
que o filósofo francês Alain Badiou nos lembrou em 1997 ao escrever seu livro ‘Saint Paul, La Fondation de
l’Universalisme’ (Presses Universitaires de France, Paris, 1997).
É
a reconciliação (Rm 5, 1-11): todas as nações são chamadas por Deus. Mas cada
uma a seu modo. Há o modo judeu, que opera por meio da circuncisão, da Lei, do
sábado e do kashkrut, mas há igualmente o modo grego, ou seja, dos mais
diversos povos que compõem a população metropolitana, que opera segundo ditames
cultuais e culturais próprios. Cada povo segue a ‘fidelidade’ por meio de ritos
apropriados à sua cultura. Deus não rejeita cultos e culturas, ele rejeita ‘a
injustiça dos homens que mantêm a verdade prisioneira da injustiça’ (Rm 1, 18).
A ‘desconsideração’.
Podemos concluir chamando a atenção
para um aspecto importante do ecumenismo de Paulo, Ele recomenda uma postura de
‘desconsideração’ em relação ao que eventualmente possa opor ‘nação’ contra
‘nação’ em termos de raça, religião, nacionalidade, gênero, posição social ou
mentalidade. Para Paulo, não adianta discutir esses pontos. Ele não trata de
ritos, dietas, observância de dias santos, pureza cerimonial, correta execução
de atos litúrgicos, diferentes confissões religiosas, opções sexuais. São
assuntos vivamente discutidos na época, mas Paulo não lhes dá importância: ‘a
circuncisão não é nada, o prepúcio não interessa’ (1Cor 7, 18).
Quando lhe
perguntam se os ‘goim’ (‘gente de fora’, os que não são ‘filhos da Aliança’,
termo traduzido em português por ‘gentios’) devem ser circuncidados para aderir
ao movimento de Jesus, ele responde categoricamente: ‘não’. O movimento tanto
comporta circuncisos como incircuncisos. Um seguidor de Jesus trata da mesma
forma quem pertence ao ‘am berit’ (povo eleito) e quem é ‘goi’, ou seja, não é
‘filho de Abraão’. ‘O Ungido derrubou o muro’ (entre as nações); ‘não é a
circuncisão ou a não circuncisão que tem importância, mas o ser na nova
criação’ (Gl 6, 15-16). Quem é da ‘nova criação’ desconsidera discussões
legalistas, rituais, litúrgicas, religiosas. Discussões que não levam a nada e
só servem para opor entre si pessoas, nações, culturas.
O dom inestimável do Papa Francisco.
Fiz as considerações acima, em torno
da Carta aos Romanos, para mostrar que em muitos pontos as posturas de São
Paulo combinam com os posicionamentos do Papa Francisco. O papa faz um elo por
cima de um arco de dois mil anos, ele recorre diretamente á primeira tradição
cristã e penso que é nesse sentido que ele é, para o mundo de hoje (não só para
a igreja católica), um ‘dom inestimável’, como escreve o filósofo polonês
Zygmunt Bauman, falecido no mês de janeiro 2017.
Não posso deixar de citar aqui alguns
parágrafos de um pequeno artigo que Bauman escreveu a respeito do papa, e que,
assim penso, combinam bem com o que escrevi acima acerca da comparação entre o
papa atual e São Paulo:
‘Entre os personagens hoje dotados
de autoridade em nível mundial, somente Jorge Mario
Bergoglio compreendeu e definiu claramente as prioridades a serem
enfrentadas:
- recordar a importância da arte do
diálogo, que nunca aprendemos o suficiente e que, neste momento, parece
esquecida: uma conversa que leva a considerar os pontos de vista, os valores e
as prioridades diferentes das nossas; uma conversa que não visa a derrotar,
humilhar ou ridicularizar um adversário, mas guiada pela empatia e voltada à
compreensão recíproca, capaz de elaborar um ‘modus convivendi’ e uma
verdadeira solidariedade comum no trabalho conjunto para tornar o mundo mais
hospitaleiro para a bondade, a justiça, a misericórdia e o amor;
- lutar contra a desigualdade
galopante e profunda, contra a pobreza e o sofrimento e a humilhação que
provoca, junto com a rejeição ou a falta de respeito pela dignidade humana e,
portanto, também contra as suas causas: avidez, cegueira moral, indiferença à
dor dos outros seres humanos, acompanhada por autorreferencialidade de
interesses, intenções e ações;
- inserir esses e outros problemas de
gravidade semelhante nos currículos das escolas de todos os níveis, do mais
baixo ao mais alto; Francisco confiou à educação a tarefa de fazer
renascer os critérios morais perdidos e restaurar vitalidade aos valores
espirituais para levá-los de volta à magnificência e à eminência corroídas por
um materialismo sem limites, por um consumismos desenfreado e por uma busca de
lucro continua e desonesta. Desse modo, ele nos convidou para nos prepararmos
para uma luta longa e difícil; na educação, não há soluções rápidas, atalhos,
resultados imediatos. Como nos adverte e nos ensina o antigo provérbio chinês:
“Se os seus projetos forem para um ano, semeie grão; se os seus projetos forem
para dez anos, plante árvores; se os seus projetos forem para cem anos, eduque
as pessoas’ (veja IHU, Unisinos, São Leopoldo).
Eduardo Hoornaert foi professor catedrático de História da Igreja. É membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA). Atualmente está estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.
www.eduardohoornaert.blogspot.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário