Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
Às vezes, a Mãe Natureza faz as coisas pelo
avesso. Em quase todos os pontos do país a água cai torrencialmente,
não apenas em pancadas ocasionais, como as tradicionais chuvas de verão, mas em
verdadeiras torrentes que a tudo inundam, arrastando casas e vidas em sua
marcha implacável e destruidora.
Nas grandes cidades, o desastre não é menor. Os
rios transbordam, a rede de esgotos mal preparada para assumir a avalanche de
água que cai inclemente e incessante inunda ruas, entra nas casas sem para isso
ser convidada e obriga as pessoas a subirem no teto dos ônibus a fim de não
morrerem afogadas. As águas transformam o outono em um contínuo e
violento dilúvio.
Talvez esta situação que vivemos nos convide a uma
frutífera reflexão sobre o que andamos fazendo com o nosso planeta, de tal modo
que a Mãe Natureza, a Criação, resolveu rebelar-se e mandar-nos tristes e
mortíferos sinais. Em que irresponsáveis desmatamentos e enlouquecidas
construções nos estamos metendo para que a água que São Francisco chamou de irmã
e que experimentamos tantas vezes como aquela substância translúcida, que
cai dos céus nos dias tórridos de verão, refrescando-nos, e que corre, mansa e
benfazeja, pelos sulcos da terra, encantando os olhos e fecundando a vida,
pareça ser, como nunca, neste ano, nossa inimiga.
Apresenta-se avassaladora, como todas as outras
forças da natureza. Sua energia descomunal vem produzindo desastres
assombrosos. E num processo crescente, a cada ano parece que mais e mais
perdemos o controle que de alguma forma acreditávamos exercer sobre os
elementos da natureza, ou pelo menos sobre as conseqüências que seu ímpeto pode
provocar. As chuvas não se limitam a fecundar a terra, mas ceifam vidas e mesmo
colheitas. Os mares, onde crianças nadam e se deleitam, mostram sua face
aterradora: sua vastidão imensurável, seu volume espantoso, sua profundidade
inacessível, sua força indomável, faz-nos sentir dramaticamente insignificantes
e frágeis. São múltiplas e muitas as experiências humanas face a este
elemento. Muitos e múltiplos são, por isso, também os significados da água no
universo arquetípico e simbólico.
As Escrituras Sagradas, no Primeiro Testamento
conservaram, em suas páginas e relatos, esta ambivalência experiencial da água
em dois relatos ricamente simbólicos: o dilúvio e a passagem do Mar
Vermelho. No primeiro, a água inunda, destrói e se configura como uma força,
frente à qual as criaturas pouco valem. No segundo, ela é representação
da justiça divina, abrindo-se para deixar passar os hebreus, o povo eleito do
Senhor e fechando-se sobre o Faraó e seus soldados, que perecem castigados pelo
próprio pecado. Nos dois casos, podemos, de fato, entrever que, apesar
das circunstâncias diferentes, as águas não apenas são essenciais à vida
humana, como também remetem ao mistério de Deus. Sua magnitude infinita
provoca-nos fascínio mas também temor. Inescrutável, como os abismos do mar, é
o seu profundo mistério. Ele nos é verdadeiramente próximo e íntimo. Esta
proximidade, porém, não anula sua infinita distância e mistério. À sua frente,
nada somos por nossa própria força e o que somos, devemo-lo a Ele. Suave, como
a água que escorre sobre o dorso dos corpos e da terra, é a sua presença. Mas
igualmente vigorosa e impressionante, como as tempestades que vergam as árvores
e revolvem os mares, é a força de seu poder. Justa, abrindo-se diante de seu
povo e fechando-se mortalmente sobre seus inimigos, é o braço forte de sua
justiça que restaura e corrige.
Diante
de mais uma estação que deixa como nunca um saldo amargo de morte e
destruições, respeitemos a Mãe Natureza, criação de Deus, que ao ser
desrespeitada, torna-se fonte de morte e não de vida para o ser humano que com
ela não soube relacionar-se.
Maria
Clara Bingemer é teóloga, professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio e autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora
Paulinas), entre outros livros.
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