por Maria Clara Lucchetti Bingemer
O movimento carismático e pentecostal, a percepção da
presença do Espírito Santo e o surgimento de novas igrejas diferentes em forma,
conteúdo e espiritualidade das igrejas cristãs históricas é um fato que merece
a atenção do mundo inteiro. Vivemos, sobretudo no Ocidente, que sempre
apresentou uma pneumatologia acanhada, um verdadeiro Tempo do Espírito.
No entanto, esse eclodir do carismatismo pneumatológico deste lado do mundo não
deixa de apresentar ambiguidades e questionamentos.
Deste lado do mundo, ou seja, no Ocidente cristão
(Europa Ocidental e América), a pessoa do Espírito Santo ficou durante longo
tempo um tanto esquecida, e mesmo deixada de lado. O Cristianismo ocidental
configurou-se após o século IV e até o século XX por uma primazia quase absoluta
do Filho, segunda pessoa da Santíssima Trindade, chegando às raias de um
cristomonismo. Por outro lado, a pneumatologia oriental cresceu e desabrochou
ricamente, dando a toda a teologia do Oriente cristão (Europa do Leste,
Península Balcânica e Oriente Médio) uma configuração trinitária, onde
pneumatologia e cristologia harmoniosamente dialogam e se entrelaçam, sobretudo
na comunidade eclesial.
Importa, então, refletir sobre este fenômeno, procurar
resgatar suas raízes e analisar suas consequências. Sobretudo num tempo como o
nosso, quando o movimento carismático cresce de maneira importante na Igreja do
Ocidente, fazendo acontecer o pentecostalismo que quase chega por vezes a um
pneumatomonismo. Vivemos, hoje, nas igrejas cristãs do Ocidente – católica ou
protestantes - o risco de que a espiritualidade e a pastoral sejam marcadas por
uma primazia quase absoluta do Espírito Santo, o que deixaria na sombra as
outras duas pessoas divinas, e sobretudo a espessura histórica e encarnada da
pessoa do Filho e o compromisso concreto que daí resulta.
Este fato gera outras consequências teológicas e também
pastorais. Uma delas é um declinar, nas igrejas, da ligação entre
experiência do Espírito e compromisso histórico. Em outras palavras, entre
espiritualidade e prática. Igualmente categorias como a
centralidade da história, a opção pelos pobres e o binômio inseparável
fé-justiça, que marcou a teologia pós-conciliar não só da América Latina mas do
mundo inteiro, deixa de estar à frente da pastoral das igrejas cristãs.
Em seu lugar, surge a chamada “teologia da
prosperidade”, que relaciona experiência de Deus e enriquecimento, sendo
adotada por pastores que muitas vezes a impõem aos fiéis de maneira coercitiva
e violenta. Esta teologia encontra seu canal de expressão em liturgias muitas
vezes bastante exteriorizantes, com grande “ruído” e igual agitação, inclusive
sem permitir às celebrações fornecerem aos fiéis espaço de oração e reflexão
onde o coração possa sentir e a razão pensar. Até mesmo autores que vêem
a positividade presente no movimento carismático em geral são críticos sobre
esses pontos da agitação espiritual, da tomada de posse da liturgia e da
desconexão com a realidade e a transformação da mesma.
Os tempos que vivemos são, sim, tempos do Espírito.
Porém, ao lado da riqueza que nos trouxeram os movimentos carismáticos que
reivindicam para si e sua atuação a primazia da Terceira Pessoa da Trindade,
encontramos muita ambiguidade. Por isso, esses tempos do Espírito, há que
vivê-los no contínuo discernimento.
Por isso é importante voltar sempre e constantemente à
1a carta de João, capítulo 4, vv 1 ss: "Amados, não
creiais a todo o espírito, mas provai se os espíritos são de Deus, porque já
muitos falsos profetas se têm levantado no mundo." Discernir é
preciso, ainda que as alegres e ruidosas celebrações carismáticas encham os
ouvidos e os espaços; ainda que seja indispensável maior atenção à
pneumatologia; ainda que os tempos plurais que hoje vivemos sejam propícios a
uma importância maior da reflexão sobre o Espírito.
Perceber nos “sofrimentos do tempo presente” e em
nossos próprios gemidos os “gemidos inefáveis” do Espírito (Rom 8,18.23.26) é a
condição da verdadeira espiritualidade cristã. A espiritualidade cristã assim
entendida é incontrolável pela teologia, que dela deve aprender a experiência
de Deus que é Pai, Filho e Espírito. Com a “retração” da morte e
ressurreição de Jesus, é o Espírito que habita em nós o responsável pelo
reconhecimento da presença do Messias em nós. E isso implicará aderir de todo
coração a esta presença, não apenas na catarse obtida na afetividade
exacerbada, mas na obediência humilde e provada que se dá pelas dificuldades da
caminhada e pelo sofrimento inexplicável nosso e alheio.
Maria Clara Bingemer, professora do Departamento
de Teologia da PUC-Rio é autora de
"Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco). wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape
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