Maria Clara Lucchetti Bingemer
A amizade é uma das formas mais nobres de amor. Já o grande filósofo
Aristóteles, na Grécia Antiga, a definia como "uma forma de
excelência moral" ou "concomitante com a excelência moral",
"extremamente necessária à vida". E prosseguia: "De
fato, ninguém deseja viver sem amigos, mesmo dispondo de todos os outros
bens".
Em seu livroÉtica a Nicomaco, o Estagirita disserta sobre a
amizade: "Com efeito, a amizade é uma parceria, e uma pessoa
está em relação a si própria da mesma forma que em relação ao amigo; em seu
próprio caso, a consciência de sua existência é um bem, e, portanto, a
consciência da existência de seu amigo também o é, e a atuação desta
conscientização se manifesta quando eles convivem; é, portanto, natural que eles
desejem conviver. E qualquer que seja a significação da existência para as
pessoas e seja qual for o fator que torna a sua vida digna de ser vivida, elas
desejam compartilhar a existência de seus amigos; sendo assim, alguns amigos
bebem juntos, outros jogam dados juntos, outros se juntam para os exercícios do
atletismo ou para a caça, ou para o estudo da filosofia, passando seus dias
juntos na atividade que mais apreciam na vida, seja ela qual for; de fato, já
que os amigos desejam conviver, eles fazem e compartilham as coisas que lhes
dão a sensação de convivência".
Os amigos de Carlos Eduardo Albuquerque Maranhão, o Sarda, o Cadu, desejavam
com ele conviver como faziam no tempo em que eram alunos do Colégio Santo
Inácio, no Rio de Janeiro. Naquele tempo, todos admiravam o colega
rebelde, de cabelos longos, luminosa inteligência e grande sensibilidade
artística. Diferente, Cadu contestava a disciplina, as diretrizes do
colégio, mas era alguém alegre, do bem, querido e com muitos amigos entre os
colegas.
Essa convivência um dia foi interrompida quando o Sarda tropeçou com as drogas
em seu caminho. Aliás, esse fantasma disfarçado de amigo aparece e
assombra muito pessoas de grande sensibilidade, que buscam seu lugar no mundo
com mais trabalho que os outros. E Cadu, ou Sarda, ou Carlos Eduardo cedeu às
seduções das substâncias que o faziam viajar e certamente nos primeiros tempos
lhe proporcionavam euforia, gostosas sensações; que lhe aguçavam a inteligência
e aumentavam ainda mais a sensibilidade e o gosto musical. A morte do melhor
amigo contribuiu certamente para que a “viagem” do querido colega e companheiro
de tantos se aprofundasse em mergulho sem volta que foi acabar na Cracolândia,
em São Paulo.
Ali ele foi encontrado, muitos anos depois, pelos amigos que nunca o
esqueceram. Ao verem sua foto no jornal, em meio ao reboliço da polícia
que invadia o local, retirando dali os habitantes, os que nunca haviam
esquecido Carlos Eduardo foram à sua procura. Pois amigo não esquece.
Pode ficar longe no tempo e no espaço, mas quando recebe um alerta, a amizade
reemerge, volta e sai no encalço do amigo para encontrá-lo, abraçá-lo e retomar
a convivência. Igualmente para ajudá-lo se necessário.
E Sarda estava em situação de extrema necessidade. Chegara a um grau
perigoso de uso de drogas. Sua saúde se encontrava seriamente
debilitada. Perdera peso, dentes. Só não perdera a sabedoria e a
alegria que o levavam a fazer declarações extremamente articuladas sobre a ação
da prefeitura na Cracolândia e outras coisas mais. Foi encontrado pelos amigos,
que o atenderam no mais urgente e imediato: deram-lhe banho, roupas,
alimento. Buscaram uma clínica para interná-lo, a fim de quí se tratasse
e tornasse a ser livre. Abriram uma lista de doações para custear-lhe o
tratamento, caro e dispendioso, em uma clínica especializada.
Sarda estava alegre, feliz com o reencontro. A mídia publicou suas fotos
e tudo levava a esperar por um final feliz. Ele queria tratar-se, desejava
libertar-se do vício. E os amigos se desvelavam e punham à disposição
tudo que podiam para ajudar a que esse desfecho acontecesse. No entanto, a
morte se antecipou e colheu Sarda pelo coração. Aquele coração sensível,
enfraquecido ao máximo pelo uso contínuo de substâncias químicas, parou de
bater poucos dias após o ingresso na clínica.
A amizade chegou tarde e não conseguiu arrancar Sarda ou Cadu das garras dessa
que é a inevitável companheira de todo viciado. Mas – e isso é talvez o
mais importante – alegrou seus últimos dias de uma maneira que apenas a relação
gratuita e amorosa consegue fazer. Sarda se sentiu acompanhado, querido,
amado. Voltou a ver que era importante para outras pessoas, que sua vida
tinha valor e sentido para aqueles que com ele cresceram e se formaram nos
bancos escolares, nos recreios, nas conversas intermináveis, nos passeios a pé
de volta do colégio.
A tristeza e a frustração dos amigos foram pungentes. Agora que ele
estava começando a viver, como aconteceu isso que ceifou seu projeto tão
brutalmente? Agora que o tinham reencontrado era muito cruel perdê-lo
novamente. No entanto, que os acompanhe novamente o grande Aristóteles, que
diz: "Quando as pessoas são amigas não têm necessidade de justiça,
enquanto mesmo quando são justas necessitam da amizade".
Esse grupo que se dispôs a ajudar o colega em situação de rua e de vício com o
mesmo carinho dos anos da infância e da adolescência experimentou a graça da
amizade que independe do êxito das iniciativas e ultrapassa as maiores
frustrações. Foi bom experimentar que é possível amar alguém
profundamente mesmo quando ele ou ela não tem absolutamente nada para dar em
troca. É bom sentir a gratuidade da relação que sempre os ligará a Sarda/Cadu,
para além dos limites da vida e da morte.
Sarda descansa em paz. Sem crises de abstinência, angústia, fissura ou
outros incômodos e distúrbios provocados pela droga. A seus amigos fica a
saudade, temperada por aquilo que o grande Jorge Luis Borges chamou de vício: a
amizade que não pode não amar, não ajudar, não conviver, não se
relacionar. A amizade que dispensa até a justiça, pois pertence à ordem
da graça e da gratuidade. Bendito Sarda, que do fundo do poço onde caiu
ainda pôde ensinar tudo isso a seus colegas e amigos que agora se sentem mais
unidos graças à sua passagem tardia e efêmera em meio a eles.
Maria
Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de
"A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed.
Garamond), entre outros livros.
Copyright 2017 – MARIA CLARA
LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio
de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário