por Frei Betto
Há três coisas inerentes aos seres humanos: nutrição, sexualidade e
espiritualidade. São as fontes de nossa existência. Pela nutrição,
desenvolvemos e asseguramos a saúde; pela sexualidade, preservamos e
multiplicamos a espécie; pela espiritualidade, transcendemos a nós mesmos,
relacionando-nos com a natureza, o próximo e Deus.
Sem ingerir alimentos ninguém vive. De nossos cinco sentidos, o paladar é o
primeiro a ser ativado. Ainda na fase intrauterina sugamos os nutrientes
maternos. Por isso, este é o mais arraigado dos sentidos. Ao mudar de país,
modificamos hábitos, adotamos outro idioma etc., mas jamais trocamos de
paladar. Como a linguagem, ele é fator primordial de identificação. Na
Austrália ou no Alasca, um brasileiro experimenta indizível prazer ao comer
arroz com feijão ou manga e abacaxi.
A comensalidade é o mais humano de nossos atos. Nenhum outro animal cuida de
preparar os alimentos e, em seguida, sentar em torno da mesa acompanhado de
seus semelhantes. Só nós, humanos, fazemos do preparo dos alimentos uma arte –
a culinária. E um ritual – estar à mesa e obedecer a um ritual: talheres,
guardanapo, pratos, travessas... E nada pior do que comer sozinho. Comer é
comungar, partilhar. É ação ressurrecional. A carne que nos alimenta é um
animal que morreu para nos dar vida, assim como a salada, um vegetal, ou o
arroz e feijão, cereais... A vida é sempre reciclável. Em torno da mesa dou ao
outro algo de mim mesmo. Ele se “alimenta” do meu ser, assim como eu do dele.
A sexualidade pode ser sublimada, reprimida, mas nunca ignorada. É o reflexo da
idade que a vida tem em nosso planeta: cerca de 3,5 bilhões de anos. Ela
assegura a cadeia geracional que veio se aperfeiçoando desde as trilobitas até
o ser humano. É a mais significativa manifestação de que a vida é um fenômeno
intrinsecamente comunitário.
A libido, como ensinou Freud, pode ser canalizada, mas não descartada. Nem
Jesus deixou de ter pulsão sexual. A questão é saber em que nível se manifesta
a nossa sexualidade, como porno, eros, filia ou ágape. Como porno (donde
pornografia) o meu prazer é a sua degradação; como eros (donde erotismo) o meu
prazer é também o seu; como filia (donde filia + sofia = amizade à sabedoria,
filosofia), o prazer reside na amizade, na cumplicidade; como ágape, nossos
prazeres culminam na felicidade, na comunhão espiritual entre dois seres que se
amam.
Graças à ciência moderna, a sexualidade não está mais atrelada à procriação, o
que permite que exista como sacramento amoroso, de interação física da
comunhão espiritual. O inverso é perverso: a sexualidade como mero prazer
físico, imediato, sem mediação da subjetividade.
Espiritualidade é a janela de nossa vocação à transcendência. Podemos
canalizá-la para o consumismo, o mercado, o poder ou escolher o dinheiro no
lugar de Deus (Mateus 6, 24), mas ela está sempre presente, pois
imprime sentido à nossa subjetividade e, portanto, à existência. Portanto,
precede a experiência religiosa, assim como o amor antecipa e fundamenta a
instituição familiar. Convém lembrar: Deus não tem religião.
A comunhão com Deus tem duas vias. A mais em voga imagina que Deus é alcançável
pela escalada de nossas virtudes morais. Quanto mais puros e santos, mais
próximos estaremos de Deus. A via evangélica adota a direção contrária. Deus é
amor e irremediavelmente apaixonado por cada um de nós. Nenhum pecado faz com
que ele se afaste de nós e deixe de nos amar. Portanto, basta-nos abrir o
coração ao amor divino.
É como a relação de um casal: o homem se sente tão amado e ama tanto a sua
mulher que não consegue deixar de ser fiel. Assim é a relação com Deus. Em
respeito à nossa liberdade, ele espera apenas que decidamos nos abrir mais ou
menos ao seu amor, que é terno. E o método mais fácil a essa abertura é a
oração, em especial a meditação, que nos permite descobrir Deus no âmago de
nosso ser, e no serviço aos mais pobres, sacramentos vivos da presença de
Cristo.
Frei Betto é escritor, autor de
“Parábolas de Jesus – ética e valores universais” (Vozes), entre outros livros.
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