por leonardo boff
DOM JOSÉ MARIA PIRES foi um dos
grande bispos proféticos da Igreja brasileira. Era negro e sempre defendeu a
causa dos afrodescendentes. Esteve nas origens das Comunidades Eclesiais de
Base e grande defensor da Teologia da Libertação. Afetuosamente o povo o
chamava de Dom Pelé e mais tarde de Dom Zumbi. Morreu na plenitude dos dias com
98 anos, ainda ajudando na pastoral popular da cidade de Belo Horizonte.
Publicamos aqui dois textos que mostram a relevância deste bispo, do
prof.Fernando Almeyer Jr da PUC-SP e do Pe. José Oscar Beozzo, nosso melhor
historiador da Igreja do Brasil. Éramos amigos de muitos anos e juntos
participamos de inúmeros encontros de bispos, de comunidades eclesiais de base
e de cursos de atualização teológico-pastoral. Vai-se mais um dos bispos
proféticos que tanto nos faltam nos dias atuais. Ele continua uam referência do
bispo pastor, profeta, grande pregador e amigo de todos especialmente dos mais
pobres. LBoff
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Dom José Maria Pires, faleceu no dia
27 de agosto de 2017 em Belo Horizonte aos 98 anos.
Foi arcebispo emérito da Paraíba-PB,
nascido em 15/03/1919, na pequenina cidade de Córregos em Minas Gerais,
nordeste do estado, participou das quatro sessões do Vaticano II. À época,
sendo o único bispo negro brasileiro, e uma das vozes mais importantes do
episcopado brasileiro irá assumir a nova imagem de Igreja proposta pelo
Concílio. Despertará com sua pregação a vontade de tantos irmãos na ajuda
eficaz aos que sofrem injustiças. Atenderá ao apelo de Deus na história e não
permanecerá impassível diante do grito do sofredor.
Ele perceberá que a Igreja estava
mudando e alegremente avançará com coragem! É essa coisa simples feita por
gente simples que é capaz de mudar o mundo, simplesmente.
Este filho de gente pobre teve por
pais Eleutério Augusto Pires e Pedrelina Maria de Jesus, e aprenderá desde cedo
que deve permanecer com os pés no chão. Em um depoimento emocionante nos
funerais do presidente Juscelino Kubitscheck de Oliveira, em 29-08-1976, dirá:
Eu andei pelas mesmas ruas pelas
quais Juscelino andou. Ele andava de pés descalços e eu também. Era comum as
crianças pobres andarem descalças na rua.
Ao pisar o chão de sua terra natal
aprenderá as lições permanentes de como ser padre, bispo e pastor. Jamais
esquecerá de que é alguém de pés descalços. E é nesse contato com o chão que se
torna um pastor fiel.
Foi ordenado padre em Diamantina-MG,
em 20/12/1941 (já completou 70 anos de sacerdócio!), atuando como pároco,
diretor de colégio, e missionário diocesano. É sagrado bispo em Diamantina,
Minas Gerais, em 22/09/1957 (em 2017, comemorou os 60 anos de
episcopado), iniciando seu ministério na diocese de Araçuai-MG, como seu
terceiro bispo, de 1957 a 1965. Seu lema episcopal será Scientiam
Salutis (a ciência da salvação). Nomeado pelo Papa Paulo VI, será o
quarto arcebispo metropolitano da Paraíba de 02.12.1965 até 29.11.1995, quando
renuncia por idade. Desde então, como bispo emérito peregrino, vive como
pregador ambulante levando o Evangelho com vigor que causa uma santa inveja.
Desde muito cedo aprendeu a arte do
bem falar: silêncio primeiro, palavra adequada depois. Em seguida, assume com
primor e delicadeza, a certeza de ser um bispo pastor: amigo, evangélico,
simples e, sobretudo, servidor dos empobrecidos.
Sua ação em favor dos simples é um
programa de vida. Vejamos seu discurso de posse como arcebispo metropolitano da
Paraíba, secundado por Dom Helder Pessoa Câmara, em plena ditadura militar
brasileira, com sua ideologia da segurança nacional, que nega a liberdade e a
dignidade da pessoa humana.
Dom Helder assim se expressa para
falar de Dom José: “Dom José Maria vai às causas, vai às raízes… E fala claro,
sem perder a serenidade, mas chamando as coisas pelos nomes. Quem quiser
livrar-se de um Cristianismo desencarnado, quem quiser livrar-se de
ensinamentos inodoros, incolores, pregados no vácuo, leia suas páginas
(prefácio do livro Do Centro para a margem, Editora Acauã, Paraíba, 1978, p.
7)”.
São suas estas palavras coerentes, ao
tomar posse como arcebispo: Não quero trazer-vos uma mentalidade de Minas Gerais,
costume ou uma civilização do estado em que nasci, naquilo em que esta
civilização, esta mentalidade, estes costumes forem diferentes da civilização,
da mentalidade e dos costumes da Paraíba. Assim como Cristo, fazendo-se homem,
assumiu a natureza humana e, por assim dizer, ocultou, guardou o que ele era,
como Deus, e apresentou-se a nós sem deixar de ser Deus, mas foi aprendendo
conosco a ser homem, a viver como a humanidade, também o novo prelado vem aqui
não para ensinar, mas antes de tudo para aprender a ser paraibano. Eu iniciarei
o meu ministério aprendendo convosco. Só me integrando é que poderei cumprir
minha missão de servir (É santa a terra em que piso. (João Pessoa, PB,
26.03.1966, in Sampaio Geraldo Lopes Ribeiro, Dom José Maria Pires – Uma
voz fiel à mudança social, Ed. Paulus, 2005, p. 17).
O diálogo, tal como foi preconizado
na bela carta programática do Papa Paulo VI, Ecclesiam Suam, e
ainda melhor expresso na Constituição Lumen Gentium se tornou
para dom José Maria o critério da vida pastoral. Tornar-se-á exímio defensor do
povo negro, sendo em sua vida alcunhado por dois apelidos carinhosos e
densamente simbólicos: no começo de sua vida episcopal será chamado como dom
Pelé (por Dom José Vicente Távora, bispo dos operários), ligando-o ao
futebolista brasileiro de fama internacional. Depois de alguns anos, será
renomeado
por dom Pedro Casaldáliga
(prelado emérito
de São
Felix do Araguaia, MT) como Dom Zumbi, para conectá-lo à causa do povo negro no Brasil, fazendo memória do
líder dos quilombos brasileiros, Zumbi dos Palmares.
Os apelidos não conseguiram
retirar-lhe sua identidade mais profunda, que é a de alguém que sempre assumiu
sua origem, sua etnia, e seu amor aos pobres como uma chave interpretativa do
mundo e como forma efetiva da encarnação cristã no nordeste brasileiro,
mergulhado em tantas injustiças e contradições que exigiam fidelidade radical
ao Cristo. Dom José não é um homem de meias palavras nem de meias ações.
Quem o ouve sempre percebe que ele
está inteiro no que diz, naquilo que fala e no que sonha e compartilha com seus
interlocutores. Ao ouvi-lo, sente-se que se está diante de um verdadeiro
pastor: não há arrogância em suas palavras. Sentimo-nos encorajados e
desafiados, jamais amedrontados. Dom José é o verdadeiro irmão e pastor, que
não abdica do diálogo, pois crê e ama o interlocutor.
Poderemos seguir os passos deste
bispo negro, em todos os recantos da terra brasileira sempre animando as
pequenas comunidades de base, as causas dos empobrecidos e as lutas por justiça
social, sem extremismos. Estará entre os operários da primeira hora, quando
surgiu a Comissão Pastoral da Terra-CPT, e ainda entre os apoiadores e
animadores do Conselho Indigenista Missionário, CIMI e ainda de cada uma das
dezenas de pastorais sociais, gestadas pelo povo e acolhidas pela Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (cNBB), quando das presidências proféticas de Dom
Aloísio Lorscheider, Dom Ivo Lorscheiter e dom Luciano Mendes de Almeida,
naquilo que será chamado o momento de ouro da Igreja brasileira, vivido entre
as décadas de 1970 e 1980. Verá nascer com as dores de parto, a poética Missa
dos Quilombos, depois proibida e estará entre os animadores da Missa
da Terra Sem Males, também proscrita e que pretendiam abrir novos caminhos
litúrgicos na inculturação e diálogo inter-religioso.
Enfrentará a ganância de fazendeiros
e coronéis nordestinos, com a simplicidade das pombas. Não pedirá favores aos
poderes políticos ou econômicos, confiando sempre na Palavra de Deus e na
compaixão dos pobres. O caminho pode ser mais lento e singelo, mas as raízes
serão sempre mais profundas e seguras. Ele clamará contra os latifundiários
como Nabot contra o rei Acab. Dirá em 05 de março de 1976 na carta pastoral
para todos os diocesanos: “quando se cansar a paciência do pobre que está sendo
esmagado pelos poderosos, a de Deus também se cansará e Deus virá fazer a
justiça que os homens se recusaram a fazer” (Carta Pastoral de março de 1976).
Dom José vê, compreende e fala do
sofrimento dos agricultores. Conhece os problemas do campo e assume um
compromisso como igreja para ser a Igreja com os fracos e oprimidos, ou seja,
uma Igreja que toma posição ao lado do pobre por fidelidade ao Evangelho e por
amor ao povo.
Denuncia o sistema capitalista por
seus frutos e por sua segregação das grandes massas. Dirá em 1967: Dar esmolas, todos acham que é razoável. Mas aceitar que é um roubo guardar o supérfluo quando a outros falta o necessário, isto lhes cheira a marxismo.
Realmente, dentro da mentalidade dominante, não é fácil aceitar a receita
da Populorum Progressio que é a mesma do Evangelho.
Sua mensagem é de vida plena e,
sobretudo de conversão. Dirá que é preciso ir do centro para a margem. Este
será seu contínuo processo vital. Movimentar-se em direção dos pequenos. Ir
para a margem da sociedade, da Igreja, do mundo. Fará este gesto ético e
religioso motivado por uma profunda vivência de Cristo, além de ser um aprendiz
permanente na prática da não-violência ativa, como ação de firmeza permanente.
Como discípulo de Cristo saberá mostrar ainda hoje as riquezas do Concílio
Vaticano II, como um projeto de vida.
Uma Igreja que se distancie dos centros e que se aproxime das margens do mundo. Uma Igreja que não espere nem confie nos poderosos e
nos senhores do mundo. Uma Igreja que deve continuar a cumprir a missão
profética de proclamar os direitos dos oprimidos mesmo sabendo que sobre ela
pesa a cólera dos governantes, pois só esta fé autêntica é que poderá salvar a
pobres e ricos. Nesta Igreja não há lugar para acomodados e passivos. Dirá de
forma incisiva: O
catolicismo brasileiro não
criou no povo uma consciência
de sua cultura, de seus valores, de sua idiossincrasia. A consciência dominante do povo é hierárquica, como aceitação passiva e talvez o maior obstáculo ao verdadeiro
desenvolvimento, pois gera acomodação e conformismo.
Para dom José Maria Pires, o oitavo
sacramento é a alegria. Sempre se diz que quando alguém alegre entra em uma
casa é como se em um quarto escuro, a janela se abrisse para a luz entrar. Esse
será a tarefa de dom José: com os pés descalços, abrir as janelas da Santa
Igreja. Não terá sido esse o pedido de um outro José, o bergamasco Roncalli,
quando convocou o Concílio? Ainda hoje precisamos de bispos que abram as
janelas de nossas Igrejas para que a alegria do Cristo nos rejuvenesça. Gente
como dom José, de pés descalços, camisa arregaçada na luta pelos pobres e uma
alegria convicta no coração, verdadeiros filhos e herdeiros do Concílio.
Falece em 27 de agosto de 2017 com
98,4 anos de muita profecia, mergulho na vida e pé na estrada ao lado de Jesus
peregrino.
Vai em paz, quilombola de Deus.
Prof. Dr. Fernando Altemeyer Júnior,
60 anos, mestre em Teologia e Ciências da Religião pela Universidade Católica
de Louvain-la-Neuve, Bélgica. Licenciado em Filosofia. Doutor em Ciências
Sociais pela PUC-SP. Professor PUC-SP.
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O Pe. José Oscar Beozzo, como exímio
historiador da Igreja acrescentou ao texto de Altmeyer ainda os seguintes
tópicos:
“Dom José Maria Pires era voz
escutada com respeito por todo o episcopado, temida pelos poderosos e acolhida
com alegria e conforto pelos pequenos, de cujas causas nunca se apartou. Por
mais de 50, anos foi assíduo frequentador, a cada ano, do Encontro
Latino-americano de Estudos – Curso dos Bispos, instância de encontro,
reflexão, oração e iniciativas corajosas que continuou congregando os bispos
latino-americanos do grupo Igreja dos Pobres do Concílio Vaticano II e aqueles
que decidiram, em seguida, trilhar o mesmo caminho em seu ministério episcopal.
Dom José Maria Pires era o patriarca
do grupo que frequentou até 2015, tendo faltado ao encontro de 2016, por razões
de saúde.
Quando o ITRA, o Instituto Teológico
do Recife, foi fechado pelo sucessor de Dom Helder, Dom José Maria acolheu em
João Pessoa professores e alunos do Instituto, para dar continuidade a uma
formação teológica comprometida com a causa dos pobres e de sua libertação e
enraizada na cultura nordestina.
Por duas vezes, fez a pé, durante um
mês, o caminho de Santiago de Compostela partindo da fronteira da França com a
Espanha. Na segunda vez, já havia completado 90 anos esse rijo camponês, que
depois de bispo emérito continuou atendendo em Belo Horizonte uma paróquia da
periferia, na simplicidade e humildade e num incansável espírito de serviço.
Por delegação da CNBB acompanhou com
carinho e compreensão o movimento dos padres casados com suas famílias, tomando
partido pela retomada do ministério por parte daqueles que o desejassem.
Batalhou para que a Igreja abrisse suas portas para o ministério ordenado de
homens casados.
Foi também o grande animador da
Pastoral afro-brasileira e do movimento dos padres e bispos negros que ganhou
espaço e amplitude na vida da Igreja do Brasil e também da América Latina e do
Caribe, através do CELAM.
Foi para mim um privilégio o ter
desfrutado de sua fiel amizade. A cada Natal e Páscoa, Dom José não
deixava de enviar uma palavra carinhosa e sempre antenada nas questões mais
urgentes do país e da Igreja.
Foi um dos sócios fundadores do
CESEEP (Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular) e
membro de sua Assembleia que, por 33 anos (1982-2015) acompanhou, incentivando
os trabalhos em curso e propondo sempre sábias orientações.
A Igreja e a sociedade brasileira
perdem uma grande figura, cuja maior glória é ter sido um fiel seguidor do
evangelho e de Jesus Cristo a serviço dos mais pobres, de suas causas e
libertação.
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