Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
A Colômbia é um país ferido por sangrenta e interminável guerra, ao mesmo
tempo que ansiosa por uma paz que se constrói lenta e tenazmente. Ali, em meio
a várias visitas, Francisco falou aos membros e representantes do CELAM
(Conselho Episcopal Latino-Americano). E pronunciou belo e poético discurso
tendo como centro a esperança, a teologal virtude que tem talento de
equilibrista e “dança na corda bamba de sombrinha”, como em meio aos horrores
da ditadura brasileira, cantou o poeta João Bosco, aliás explicitamente citado
pelo Papa.
Nessa esperança, segundo o Papa, estamos treinados os latino-americanos,
especialistas que somos em equilibrismos e acrobacias para continuar vivendo,
lutando, dançando e celebrando. E ela tem, em nossas latitudes, ainda
segundo ele, rosto feminino. Inúmeros rostos femininos do continente desfilaram
diante dos olhos dos bispos ali reunidos, descritos pelos lábios do
Pontífice. As mulheres e mães indígenas e morenas, as trabalhadoras que
cumprem valentemente sua tripla jornada de trabalho, as avós catequistas, as
religiosas, as consagradas de toda sorte, discretas artesãs do bem.
Sobre elas repousa a Igreja do sul da América. Pois sem elas, essa mesma
Igreja perderia a força e a paciência de renascer continuamente, de acender uma
e outra vez a chama às vezes trêmula e bruxuleante da fé. Com sua
sensibilidade, o Papa sabe que o desejo por uma fase nova, mais vital da fé
cristã nessas latitudes, não se realizará sem o concurso das mulheres. Por isso
mesmo, voltou Bergoglio a suas sempre renovadas advertências sobre o perigo do
clericalismo. E pediu aos bispos que valorizem as mulheres, que as
respeitem, que não as reduzam a servas e funcionárias “do nosso clericalismo
recalcitrante”.
Francisco sabe de onde e para onde fala. Não é de hoje que a mulher abre
caminhos na Igreja e sustenta e anima a esperança da comunidade cristã quando
essa ameaça desfalecer. As coisas têm sido assim desde o tempo de
Jesus. Foram elas que seguiram o Rabi desde a Galileia até Jerusalém; que
perseveraram com ele até o fim; que não se retiraram do pé da cruz,
acompanhando-o em sua agonia; que prepararam unguentos e perfumes para ungir
seu corpo, acreditando na vida e não na morte; que esperaram “que a noite da
morte devolvesse o Senhor da vida”. Foram elas, enfim, que receberam o
primeiro anúncio da Ressurreição e com o júbilo desta boa notícia inundaram o
mundo. E assim reacenderam a chama da fé dos apóstolos, mergulhados em
tristeza e desolação com a perda do Mestre.
As mulheres sabem da vida. Elas têm inscrita em seus corpos a sede da
vida. Por isso, perseveram e não desanimam nem em meio às piores
adversidades. De norte a sul do continente, as mulheres se fazem
presentes onde há sofrimento e morte para clamar pela vida. No deserto do
Atacama, no Chile, as mulheres de Calama buscam incansavelmente os restos dos
maridos, irmãos e filhos que o terror matou, mas que o deserto devolve,
incorruptos. No centro de Buenos Aires, as “loucas” da Praça de Maio
cobrem a cabeça com as fraldas dos filhos desaparecidos e caminham silenciosas
desafiando o governo a revelar o que fez a ditadura com aqueles a quem deram a
vida, onde estão seus corpos. Nas favelas brasileiras, senhoras e mães
endurecidas pela dor, mas teimando em lutar pela vida, enfrentam os temíveis
chefes do tráfico de drogas, pedindo os corpos dos filhos mortos para poder
dar-lhes dignas sepulturas.
Não
cuidam apenas de seus filhos, mas também dos alheios. Não há órfão que não
encontre abrigo em seu colo e sua casa. Não há esforço de ajuda
voluntária onde as catástrofes naturais deixam rastro de perda e calamidade que
por elas não seja presidido. Não há celebração comunitária em que não estejam
elas, organizando o culto, os cantos, a missa, a procissão, a festa.
Por
isso, o Papa repete incansavelmente. Sem as mulheres o Evangelho não
penetrará pelos quatro cantos do continente, de forma alegre e efetiva. E mais
do que isso: sem elas o mundo se tornará um espaço sempre mais estéril,
violento e necrófilo. Toda a Igreja, e também a sociedade, sempre tão
machistas, têm a aprender com elas a perseverança que se alimenta da esperança
que vence a morte. É mais que hora de reconhecer o imenso serviço que as
mulheres têm prestado à Igreja e à sociedade como um todo. Passou da hora de
saldar a dívida que a comunidade eclesial e a sociedade civil têm para com
elas, tratando-as e reconhecendo-as como companheiras e irmãs, não servas, não
subalternas, não subordinadas na missão de transformar o mundo em lugar mais
humano para se viver. É mais que hora de aprender com elas a “dançar na corda
bamba de sombrinha”, sem medo de se machucar e assumindo alegremente o
perigoso, mas fascinante estilo equilibrista de viver.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, a é autora de "Violência e Religião" (Editora PUC-Rio/Edições Loyola), entre outros livros.
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