Por
Maria Clara Lucchetti
A notícia chegou no dia 27 de agosto. Os sentimentos do coração
eram de saudade e luto. A Igreja do Brasil celebrava a ausência e a falta
de dois queridos bispos profetas e amigos do povo: Dom Helder Camara e
Dom Luciano Mendes de Almeida. Ambos faleceram num dia 27 de agosto, Dom
Helder em 1999 e Dom Luciano em 2006.
Agora era 27 de agosto de 2017. E a notícia
chegou acrescentando mais um profeta à lista: Dom José Maria Pires,
arcebispo emérito de João Pessoa, faleceu em Belo Horizonte, onde residia nos
últimos tempos, aos 98 anos. Vítima de pneumonia, o querido pastor da Paraíba e
do Nordeste, o porta-voz dos negros e afrodescendentes fechou os olhos
mansamente em um hospital.
Mineiro era, mineiro nascera, natural de Córregos.
Entrou no seminário ainda jovem, foi ordenado e posteriormente sagrado
bispo. Foi o primeiro negro brasileiro a ser nomeado arcebispo. Em
sua trajetória eclesial, Dom José Maria Pires enfrentou todos os preconceitos
inerentes a uma pessoa de sua raça e cor em um Brasil ainda não alforriado da
escravidão. Ele mesmo contava: “Desde a escola primária, quando
fazia alguma coisa que pudesse merecer um castigo, sempre me recordavam que eu
era negro, como se existisse uma associação entre a cor e a coisa mal feita. E
foi assim durante toda a minha vida. Inclusive depois que me tornei bispo.”
E perguntado sobre se ainda
existia preconceito contra os negros no Brasil respondia com cândida firmeza:
“É claro que existe preconceito.
Basta ver quantos somos” . E acrescentava: “Nem os
embaixadores brasileiros na África são negros” . Essa
consciência o fez ser permanentemente solidário com aqueles de sua
raça. Jamais esmoreceu em sua luta em favor dos pobres e dos negros.
Participou do Concílio Vaticano II e foi um dos
signatários do Pacto das Catacumbas, em que um grupo significativo de bispos
latino-americanos se comprometeu em Eucaristia celebrada na catacumba de
Domitila. Ali os pastores faziam um pacto com suas ovelhas mais
vulneráveis e mais pobres. Comprometiam-se a uma vida de simplicidade e
pobreza, sem nenhuma ostentação, partilhando o estilo de vida dos mais pobres
entre os mais pobres de seu rebanho.
Dom José Maria foi sempre fiel a esse pacto e o
relembrava continuamente em seus discursos e homilias. Por sua sintonia com os
de sua raça e o carinho que sentia por sua negritude, quiseram chamá-lo de dom
Pelé. Dom José recusou a alcunha. Pelé não lhe parecia alguém
comprometido com a causa dos negros. Optou por outro apelido: dom Zumbi.
Assim estaria assumindo em seu ministério episcopal tudo que a figura do grande
líder negro Zumbi dos Palmares representava. Líder rebelde e indômito, que
enfrentou Ganga Zumba, a Coroa Portuguesa e os bandeirantes.
Dom Zumbi em seu ministério à frente da
arquidiocese de João Pessoa, em pleno coração do nordeste brasileiro, carregava
essa herança libertária e lutadora. Era aliado sem quartel dos pobres,
dos submetidos e de todos que sofriam algum tipo de opressão.
Juntamente com outros bispos, como Dom Helder
Camara, Dom Ivo Lorscheiter e Dom Aluísio Lorscheider, esteve na linha de
frente da luta contra a ditadura militar e a repressão por esta instaurada no
Brasil. Inspirado pela Teologia da Libertação, foi um lutador incansável
pelos direitos humanos, pela justiça e pela paz.
Em sua humildade e extrema simplicidade, andava
pelos mocambos e favelas onde estava seu povo, a todos visitando e trazendo o
conforto da presença pacífica, alegre, humilde e imprescindível. Profeta por
sua palavra e silêncio, por sua ação e mera presença, Dom José Maria Pires
evangelizava por onde passava, testemunha fiel do Reino de Deus.
A notícia de sua morte, ocorrida no mesmo dia em
que, há onze anos, morria Dom Luciano, o santo dos pobres, o anjo do povo da
rua e também no mesmo dia em que há 18 falecia Dom Helder, o bispo dos pobres,
cuja voz denunciou os horrores da ditadura militar no mundo inteiro, fundador
da Conferência Episcopal Brasileiro revela um mistério diante do qual há que
silenciar.
Este mistério nos diz que há uma estranha aliança
entre memória e profecia. Enquanto fazemos memória de dois grandes
pastores que marcaram a vida da Igreja em nosso país, há outro profeta que se
vai e engrossa a nuvem de testemunhas que nos dizem que a luta não pode
esmorecer, que a luta não pode ter sido em vão, que é preciso continuar
lutando, pensando, falando, escrevendo, fazendo uma teologia que reflita sobre
o Deus que se revelou na história do povo de Israel e da primeira comunidade
cristã como amigo e defensor dos pobres.
A memória que celebra e reverencia esses três
pastores e profetas deverá ser nossa força para seguir em frente, levando
adiante o projeto do Reino de Deus e encontrando metáforas novas, fortes e
atuais para anunciá-lo ao mundo de hoje, em meio às injustiças, aos conflitos e
aos obstáculos mais diversos.
Enquanto isso, soam os atabaques em festa para
recepcionar Dom Zumbi. A comunidade negra do céu e da terra dança e canta
festejando a chegada à plenitude da vida para este servo bom e fiel, que passou
a vida fazendo o bem. Que em um Brasil que foi o último país do mundo a
abolir a escravidão; que apesar da enorme proporção de população negra que
habita sua superfície ainda é atravessado por profundo preconceito; que ainda
está longe de integrar toda a riqueza que a cultura negra representa e encarna,
a vida de Dom Zumbi possa ser inspiração e esperança.
Que o profeta negro continue vivo no meio de nós,
transmitindo a alegria do Evangelho que é boa nova de libertação para todos os
agrilhoados pelos preconceitos de raça, de sangue e de cor.
Maria
Clara Bingemer é professora do Departamento de
Teologia da PUC-Rio e autora de "A Argila
e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond),
entre outros livros.
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