Por Maria Clara Lucchetti Bingemer
A comunidade da Rocinha me foi apresentada pelo querido Pe. Thierry Linard de
Guertechin que, apesar de todo esse nome nobre que denuncia sua origem belga e
aristocrata, ali morava. Jesuíta, vivia há muitos anos no Brasil e ali
plantou seu coração. Mesmo quando transferido para outras paragens do Brasil e
do mundo, sempre volta, porque ali é o seu lugar.
Convidada por ele, comecei a ir à capela de Nossa Senhora Aparecida, no Bairro
Barcelos. Acompanhava o pessoal que coordenava os círculos
bíblicos. Subia tranquilamente e saía já com a noite caída. Jamais
tive problemas, só soluções. Como no dia em que fechei a porta do meu
carro com a chave dentro e um menino da comunidade imediatamente abriu-a com um
nozinho de barbante. No dia em que meu carro, já meio velhinho, ferveu,
juntaram-se vários rapazes entendidos em mecânica e num segundo o carro andava
de novo.
Eu chegava com medo às vezes. Não da realidade do lugar. Jamais acreditei
que me aconteceria algo. Eu era amiga do padre, o pessoal confiava em
mim. Mas tinha medo quando conversava com eles sobre algum evangelho mais
“difícil”. Daqueles que falam em demônios que Jesus manda para a vara de
porcos etc.
Jamais tive qualquer dificuldade com aquele povo que nadava de braçada e
passeava tranquilo pela Palavra de Deus, como se estivesse em casa. E
saía eu evangelizada e desejando que logo chegasse o dia de voltar e receber
mais do que dar àquele povo amigo, aberto, lutador e cheio de fé.
O mês de maio era um caso à parte. Não era possível trabalhar com a
Bíblia porque Nossa Senhora era rainha absoluta. Várias imagens da Virgem
Maria circulavam pelas casas onde as reuniões aconteciam e os mistérios do
rosário eram o conteúdo das reuniões. No final do mês, havia missa
festiva. Linda, a capelinha toda enfeitada com o maior carinho. As
crianças vestidas de anjinhos irradiavam felicidade por poder participar da
procissão de entrada. A missa era celebrada e depois todos saboreavam,
sob a proteção da Mãe querida, as comidas e bebidas expostas sobre uma mesa
preparada com carinho.
O tempo passou e eu tive que assumir outros
trabalhos; já não tinha tempo para ir à Rocinha fazer trabalho pastoral.
O povo ficou triste e eu também. Mas os filhos estavam crescendo, o
trabalho era muito e não se podia fazer tudo. Voltei lá algumas vezes, em
datas comemorativas: aniversário do padre amigo, missa solene pelos seus 25
anos de votos perpétuos.
A Rocinha foi mudando. Passou a ser ponto
turístico, com veículos e excursões organizadas e repercussão
internacional. Foi uma das primeiras comunidades pacificadas por
UPA. Parecia que um novo momento acontecia no Rio e começava por
lá. Cada vez que eu passava e via as luzinhas esparsas pela montanha como se
fosse um presépio, sentia um carinho especial por aquela comunidade onde havia
passado várias horas de minha vida.
A crise política chegou e a falência do Estado
também. A cidade começou a sofrer uma decadência triste de se ver, que só
não consegue atingir a beleza natural do mar e das montanhas. O clima é
de depressão e de mais violência. E essa violência atingiu em cheio a
Rocinha.
Tiroteios, balas e mais balas, toque de
recolher. As pessoas sem poder sair de casa e ir trabalhar. Jovens
perdendo o vestibular na Uerj. Mensagens de pessoas sitiadas dentro da
comunidade temendo por suas vidas. Amigos me dizem que suas funcionárias
domésticas não conseguiram chegar porque ficaram com medo de sair de
casa. O terror se instalou na Rocinha.
Onde está o reforço das Forças Armadas enviado para
a cidade? Onde está o prefeito? Onde o secretário de
segurança? Dão declarações na televisão, mas a comunidade continua
sitiada, apavorada, confinada, com medo e insegurança.
Rocinha, cadê você? Todas as inovações que você
tinha atraído e conquistado agora jazem perdidas sob um mar de violência.
E a cidade da qual você é um dos pontos de atração geme, sofrida.
Até quando o povo do Rio vai ter que suportar
isso? Como é possível tanto descaso com uma cidade que é o cartão postal
do Brasil, centro cultural dos mais pujantes, atração para turistas do mundo
inteiro?
Após a violência desenfreada que esburacou as
paredes das casas e apavorou os moradores, eu pergunto: Rocinha, cadê
você? E rezo para que todos aqueles que eu amo e ali vivem estejam bem e
possam chegar ao dia seguinte, na esperança de que um dia tudo vai melhorar, um
dia a comunidade vai merecer providências efetivas e atenção dos governantes,
um dia vai haver justiça, um dia... a Rocinha vai poder dormir sossegada.
Maria Clara Lucchetti Bingemer é
professora do Departamento de Teologia da PUC-RJ. A teóloga é autora de “Simone
Weil – Testemunha da paixão e da compaixão" (Edusc)
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