Por
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Bordão constante da teologia feminista, esta frase que consta da perícope do
evangelho de Mateus 15,38, volta hoje – invertida porém – à linha de frente do
noticiário e da reflexão teológica.
O contexto evangélico é a multiplicação dos pães, quando Jesus de Nazaré, a
partir da pobreza de sete pães e dois peixinhos, dá de comer a uma imensa
multidão faminta. O texto identifica os personagens masculinos que se
alimentaram, mas sem contar as mulheres e as crianças.
Quando as mulheres entraram no campo da teologia, levantaram suspeita sobre
esta frase, mostrando quão machista era a sociedade daquele primeiro século da
nossa era. Também foi assinalado por homens e mulheres que se deixaram
tocar pela Escritura quão profunda se revelou a revolução do rabi de Nazaré,
para quem as mulheres contavam – e muito! – pois as acolhia e ouvia com
carinho, integrava-as em seu seguimento da Galileia até Jerusalém, apontava-as
como exemplo a seus discípulos e convertia-as em beneficiárias privilegiadas de
seus milagres.
Também contavam para Jesus as crianças, a quem acolhia com alegria e desvelo,
opondo-se aos discípulos que queriam afastá-las porque o perturbariam.
Jesus se alegrava de vê-las, ouvi-las e tê-las por perto, e afirma que delas é
o Reino dos céus.
Hoje, mulheres e crianças são contados, sim. Mas a contagem da qual fazem
parte é macabra e terrível. São contados entre as maiores vítimas da
violência em nosso país. A situação mundial não é muito diferente, mas no
Brasil a coisa chega a níveis exponenciais.
Recentemente, a denúncia de uma mulher que sofreu abuso em um carro da frota
Uber surpreendeu a sociedade. Atacada e ameaçada pelo motorista, tornou
pública a agressão na imprensa e nas redes sociais. A vítima, machucada,
ofendida, humilhada e desrespeitada, desabafou: "O mundo é um lugar
horrível para ser mulher".
O agressor alegou que ela estava bêbada. Como se isso fosse atenuante
para seu comportamento absolutamente condenável. Uma mulher independente
e solteira, que volta para casa à noite de uma festa ou um encontro com amigos,
pode ter ingerido álcool, mas nem por isso se encontra à disposição das taras
de machistas e agressores que resolvem abusar de sua vulnerabilidade.
Chama um uber para não descumprir a lei seca que vigora em sua cidade e aquele
que devia transportá-la segura para casa a ataca e desrespeita.
Outro caso foi de um mesmo homem que abusou de várias mulheres em ônibus e
transportes públicos. Seu comportamento chegou ao grau máximo do
desrespeito e da violência. Preso e solto em seguida, voltou à cadeia apenas
depois de repetir mais de uma vez o mesmo crime.
Parece que o mundo evolui, a sociedade avança, as mulheres conquistam direitos
e galgam degraus na escala social, mas a mentalidade machista permanece
intocada. E para estes homens elas não contam. São objetos para
serem usados e abusados, segundo a vontade e o desejo do macho. A cada 2
minutos uma mulher sofre violência no Brasil. Essa estatística parece haver
aumentado nos últimos tempos. Talvez porque hoje as mulheres já não se
calem; elas denunciam os abusos e as agressões recebidas e os expõe no espaço
público.
Com as crianças o panorama não é muito diferente. Desde o espancamento
doméstico, onde as agressões à mulher acabam atingindo igualmente os filhos,
até as balas perdidas que interrompem a vida de crianças pequenas e indefesas,
a violência contra os menores só faz aumentar. Violência anônima, que não
mostra o rosto e atinge os pequenos que estão começando a vida, interrompendo
brutalmente sua infância. As crianças não contam, assim como as
mulheres. E a violência os atropela, semeando morte e terror entre
aqueles que são os mais vulneráveis de um tecido social esgarçado e sem
consistência.
O mundo é um lugar terrível para ser mulher. E para ser criança. E
para ser cidadão que passa tranquilamente pela rua, mas tem esse simples
direito cassado pela violência, pelo terror, pela cegueira agressora, para a
qual não contam os cidadãos pacíficos que estão apenas exercendo seu direito de
ir e vir. Mais ainda quando são mulheres e crianças.
Urge uma conversão em nível comunitário, social, e não apenas individual.
A humanidade é composta por homens e mulheres. As crianças estão no mundo
para serem protegidas e educadas. Não para serem agredidas,
desrespeitadas, espancadas e assassinadas. Apenas quando o machismo e a
violência por ele gerada forem superados, poderemos, enquanto sociedade, viver
a alegria do Evangelho de Jesus e ver acontecer o Reino por Ele
prometido.
Maria Clara Lucchetti
Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio. A teóloga é
autora de"Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco), entre
outros livros.
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