Por Ivone Gebara
Escrevo para um espaço de defesa da Pastoral
Popular. Não sei dizer se a teologia feminista tem a ver com a pastoral
popular. Minhas dúvidas são fundadas visto que a teologia feminista
crítica não parece ter modificado o que ainda se ensina na teologia e
mesmo na maioria das pastorais populares. Talvez depois da leitura desse texto
vocês possam entender melhor a minha dúvida.
Desde a década de 1980 faço teologia feminista. De
teóloga da libertação passei a ser teóloga feminista da libertação. Em termos
bastante simples isto significa que acordei e fui acordada para a problemática
cultural, social e religiosa das mulheres que em meio à premência das lutas
libertárias contra os imperialismos e as ditaduras se organizava em muitos
lugares. O nó do problema era a especial opressão vivida pelas mulheres
denunciada desde a segunda metade do século XX por muitas intelectuais e
grupos. Esta denúncia nunca foi seriamente acolhida pela teologia da libertação
embora algumas mulheres teólogas fossem acolhidas nas reuniões organizadas
pelos teólogos.
A teologia feminista na Igreja Católica
constitui-se como uma espécie de heresia à dogmática
tradicional. Hoje digo heresia, pois estou convencida disso. Entretanto, não
uso mais essa palavra com um sentido negativo. O dogma (dokeo, do grego)
é a ‘verdade que tem que ser ensinada’ e a heresia (airesis)
é ‘a afirmação que discorda do dogma’, que abre brechas para a
escolha, para opções, para o pensamento ditado pelas diferentes circunstancias
da vida. É nesse sentido que me considero parte de uma heresia e
não na linha daqueles que crêem que existe uma só verdade à qual temos que nos
curvar.
Ultimamente, tenho sido de novo atropelada por
pessoas e grupos que infelizmente são muito ouvidos pela maioria do episcopado
brasileiro. Estes grupos acusam-me de feminista, defensora do aborto, da
ideologia de gênero, contraria aos valores da família, desobediente ao
Magistério, falsa religiosa etc. A acusação aparece como se eles estivessem com
a verdade e do lado de Deus. Eu e outras mulheres e homens estaríamos do lado
da mentira e do Diabo.
Creio que precisamos entender mais profundamente,
embora de forma breve o que está acontecendo para além das emoções e
julgamentos que nos habitam.
Vivemos do ponto de vista cultural, político e
econômico numa grande instabilidade que não vem de hoje, embora estivéssemos
sentido-a de forma mais aguda nesse momento. Todos querem explicações e
acusam-se mutuamente de ser a causa dos males do mundo. É como se precisássemos
de ‘bodes expiatórios’ ou ‘cabras expiatórias’ que representem a razão de
nossos males. Nessa perspectiva, pergunto-me qual é o mal que representa
o feminismo para os grupos que se crêem arautos da verdade ‘revelada’ por
seu Deus? Qual é o mal do feminismo para o cristianismo? Para responder a essas
questões é preciso dizer em grandes linhas o que tem feito o feminismo e a
teologia feminista na nossa cultura.
O feminismo apesar de seus limites desvendou as
injustiças sociais, políticas e legais em relação às mulheres e outros grupos.
Da mesma forma a teologia feminista desvendou um processo semelhante nas
estruturas e nos conteúdos teológicos vigentes por mais libertadores que
queiram apresentar-se. Denunciou as estruturas androcentricas tanto na
organização, nas políticas e nos conteúdos teológicos do passado e do presente.
Denunciou as justificações que fazem da cultura e dos poderes de odor
totalitário. Estas denúncias mudam o dogma masculino e os dogmas afirmados como
‘revelações’ de Deus. Sua pretensão epistemológica não é mais aceitável nos
dias de hoje. Ela representa uma forma de totalitarismo cognitivo que passa a
ser uma espécie de pedagogia de dominação religiosa do povo.
Por muito tempo as mulheres permaneceram como
reféns das teorias teológicas em relação a elas, a seu corpo, ao seu poder e
submissão e desde o século XIX e XX têm denunciado a cumplicidade das teologias
com as políticas de submissão das mulheres. As teologias feministas inspiradas
pelo feminismo e por outras leituras dos Evangelhos e da Tradição vão propor
outra forma de conhecimento. Vão partir da quotidianeidade da vida, apreender
os problemas diversos que se revelam e através deles entender o amor ao próximo
e a nós mesmas. Tenho refletido muito sobre isso e sido pouco
compreendida pelos donos da religião de ‘mão única’.
Outro problema central que enfrentamos hoje tem a
ver com as questões da sexualidade e reprodução humana ou em outros termos, com
o tratamento parcial, injusto que atribuímos às diferentes orientações sexuais
na sociedade e na Igreja. Tenho também refletido sobre essas questões à luz de
outra interpretação da tradição cristã, talvez mais ética do que metafísica.
Reflito sobre nossos corpos de mulheres que engravidam e parem muitas vezes sem
escolha e são tratados como ‘objetos’ pecadores e submissos às vontades e leis
masculinas. Escrevo e falo da violência que nos é feita em casa e na rua bem
pouco considerada pelas igrejas cristãs. Falo da ocultação de nosso valor e da
falta de representação significativa nas instancias decisórias das instituições
religiosas. Insisto no pouco investimento que se faz na formação das mulheres
na Igreja e da falta de respeito que se têm em relação a seu saber.
Isto tudo me leva a afirmar o fato de que na vida
nem tudo pode ser rigorosamente regrado pela razão e pela religião dogmática.
Os imprevistos, os escorregos, as limitações fazem parte da vida humana e nos
ensinam coisas diferentes. Nessa linha não há apenas um único remédio, o
oferecido pela hierarquia da Igreja e, sobretudo por uma poderosa elite
política que controla a sexualidade humana. Há muitos caminhos diversos e às
vezes até contraditórios que podem até ajudar a solucionar um problema ou
aliviá-lo.
Tenho falado e escrito sobre todas essas coisas nas
minhas aulas, conferências e textos. Reconheço que nesse sentido sou herética
assim como tantas outras pessoas o foram para tentar renovar as visões do
mundo. Minha postura gera tensões. Resolvi não me defender. Sigo apenas
explicando minhas razões e minhas opções éticas. Com alegria percebo que há
pessoas e grupos que se encontram com minha maneira feminista de refletir a
vida e a história presente. Não tomo o feminismo como uma teoria perene e única
verdade. O feminismo é hoje, porque nasceu de nossas necessidades... Amanhã
será provavelmente outro o teor de nossas lutas.
Para além do dogma e da heresia gostaria que
existisse um diálogo maior entre nós, a partir do qual pudéssemos ouvir uns aos
outros e até aprender. Não sei se esse desejo é possível no contexto atual. Mas
ele faz parte de minha crença na possibilidade de crescimento qualitativo dos
seres humanos. E a vida continua...
Ivone Gebara é filosofa e teóloga
feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na
formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do
Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de
muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação
das Irmãs de Nossa Senhora.
É uma das principais defensoras da Teologia
Feminista, irmã da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora. Aos 73
anos, tem mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a
temática
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