O Jornal On Line O PORTA-VOZ surgiu para ser o espaço onde qualquer pessoa possa publicar seu texto, independentemente de ser escritor, jornalista ou poeta profissional. É o espaço dos famosos e dos anônimos. É o espaço de quem tem alguma coisa a dizer.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

A REVANCHE DE DEUS



Frei Betto

         A religião, no século XX, se libertou de seu caráter heteronômico, a que o fiel recebe da autoridade religiosa e a ela se submete, para adquirir caráter autônomo, como escolha pessoal e convicção íntima. A sociedade se laicizou. O poder já não é exercido em nome de Deus, se dessacralizou. Deixou de ser atribuído ao sobrenatural para emanar da vontade soberana do povo. Eis o advento da democracia.
         No entanto, agora assistimos a um retrocesso. Desde a queda do Muro de Berlim, a religião ganha espaço, não propriamente como experiência espiritual, mas como ideologia política. Há uma ressacralização da política. Quando um presidente anuncia que nomeará para o STF um juiz "terrivelmente evangélico”, eis um dos sintomas da revanche de Deus.
         Max Scheller dizia que “o homem possui um Deus ou um ídolo”. A ciência é algo moderno. Teve inicio no século VI a.C., na Grécia, no confronto com o pensamento considerado mítico ou mágico. A ideia de um Cosmo isento de interferência sobrenatural surgiu na Escola de Mileto, com Anaximandro e Anaxímenes. Criaram-se as condições para o advento da demonstração matemática e de um novo modo de pensar (Tales).
         Porém, a humanidade teve de aguardar séculos para adotar a prática da experimentação, o que ocorreu com Galileu. A ciência moderna nasceu no inicio do século XVII, quando a Europa conheceu profunda revolução cultural e moral, na qual se destacaram Copérnico, Kepler, Galileu, Descartes e Newton. Eles destronaram a cosmologia grega. O Cosmo fechado e perfeito cedeu lugar ao Universo infinito situado no espaço-tempo desprovido de limites e significado.
         A Igreja ficou abalada ao ver a ciência questionar suas opiniões a respeito da origem do mundo e do movimento dos planetas. Derruba-se a associação entre verdade e autoridade. O espírito crítico ocupa o lugar do autoritarismo servil.
         O poeta John Donne (1611), na época em que a ciência ainda era chamada de filosofia natural, refletiu o espírito da época: “A nova filosofia torna tudo incerto. Tudo está em pedaços, desaparece toda coerência. Não há mais relações justas, nada mais se harmoniza.” E Pascal exclamou: “A imensidão desses espaços infinitos me apavora.”
         Instaura-se o conflito entre ciência e religião. Espinoza expressa a ruptura ao declarar que o objeto da filosofia é unicamente a verdade, enquanto o da fé é a obediência e a piedade.
         As monarquias cederam lugar à república. A politica, não mais tributária da religião, deve emergir da própria sociedade, sem derivar de um poder sagrado. A felicidade deixou de ser uma quimera pós-morte para se tornar algo a ser alcançado nesta vida.
         Agora, em pleno século XXI, a roda gira ao contrário. Frente ao niilismo e ao relativismo levanta-se o fundamentalismo. Incapaz de dialogar com a ciência, a religião se reapropria do poder para ressacralizá-lo e tornar a palavra da autoridade sinônimo de verdade. Ainda que a autoridade declare, sem nenhum pudor, que a Terra é plana e que “índio está se tornando humano como nós”, declarou Bolsonaro em 24 de janeiro deste ano. Raciocínio que constitui base das políticas eugênicas de extermínio.
         Essa pós-verdade é uma severa ameaça à democracia e aos direitos humanos. Porque prescinde da ciência, reveste-se de caráter religioso e não se envergonha de sua ignorância. Não fala à razão, fala à emoção. Faz os ingênuos acreditarem que as autoridades são oráculos divinos. E que os males da sociedade jamais serão solucionados pela força da lei, e sim pela lei da força. Toda a retórica “democrática” do poder é mero jogo de cena para abrir caminho ao mais inescrupuloso autoritarismo, arraigadamente disposto a se perpetuar no poder.
         Essa a lógica predominante nos escribas, fariseus e saduceus do tempo de Jesus. Ele, sim, foi a revanche de Deus perante o Templo, que se havia transformado em “covil de ladrões” (Mateus 21, 13).

Frei Betto é escritor, autor de “Um Deus muito humano” (Companhia das Letras), entre outros livros. 
®Copyright 2020 – FREI BETTO – AOS NÃO ASSINANTES DOS ARTIGOS DO ESCRITOR - Favor não divulgar este artigo sem autorização do autor. Se desejar divulgá-los ou publicá-los em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, entre em contato para fazer uma assinatura anual. – MHGPAL – Agência Literária (mhgpal@gmail.com) 
 http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português e espanhol - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com


Nenhum comentário:

Postar um comentário