Frei Betto
A religião, no século XX, se libertou de seu caráter heteronômico, a que o fiel
recebe da autoridade religiosa e a ela se submete, para adquirir caráter
autônomo, como escolha pessoal e convicção íntima. A sociedade se laicizou. O
poder já não é exercido em nome de Deus, se dessacralizou. Deixou de ser
atribuído ao sobrenatural para emanar da vontade soberana do povo. Eis o
advento da democracia.
No entanto, agora assistimos a um retrocesso. Desde a queda do Muro de Berlim,
a religião ganha espaço, não propriamente como experiência espiritual, mas como
ideologia política. Há uma ressacralização da política. Quando um presidente
anuncia que nomeará para o STF um juiz "terrivelmente evangélico”, eis um
dos sintomas da revanche de Deus.
Max Scheller dizia que “o homem possui um Deus ou um ídolo”. A ciência é algo
moderno. Teve inicio no século VI a.C., na Grécia, no confronto com o
pensamento considerado mítico ou mágico. A ideia de um Cosmo isento de
interferência sobrenatural surgiu na Escola de Mileto, com Anaximandro e
Anaxímenes. Criaram-se as condições para o advento da demonstração matemática e
de um novo modo de pensar (Tales).
Porém, a humanidade teve de aguardar séculos para adotar a prática da
experimentação, o que ocorreu com Galileu. A ciência moderna nasceu no inicio
do século XVII, quando a Europa conheceu profunda revolução cultural e moral,
na qual se destacaram Copérnico, Kepler, Galileu, Descartes e Newton. Eles
destronaram a cosmologia grega. O Cosmo fechado e perfeito cedeu lugar ao
Universo infinito situado no espaço-tempo desprovido de limites e significado.
A Igreja ficou abalada ao ver a ciência questionar suas opiniões a respeito da
origem do mundo e do movimento dos planetas. Derruba-se a associação entre
verdade e autoridade. O espírito crítico ocupa o lugar do autoritarismo servil.
O poeta John Donne (1611), na época em que a ciência ainda era chamada de
filosofia natural, refletiu o espírito da época: “A nova filosofia torna tudo
incerto. Tudo está em pedaços, desaparece toda coerência. Não há mais relações
justas, nada mais se harmoniza.” E Pascal exclamou: “A imensidão desses espaços
infinitos me apavora.”
Instaura-se o conflito entre ciência e religião. Espinoza expressa a ruptura ao
declarar que o objeto da filosofia é unicamente a verdade, enquanto o da fé é a
obediência e a piedade.
As monarquias cederam lugar à república. A politica, não mais tributária da
religião, deve emergir da própria sociedade, sem derivar de um poder sagrado. A
felicidade deixou de ser uma quimera pós-morte para se tornar algo a ser
alcançado nesta vida.
Agora, em pleno século XXI, a roda gira ao contrário. Frente ao niilismo e ao
relativismo levanta-se o fundamentalismo. Incapaz de dialogar com a ciência, a
religião se reapropria do poder para ressacralizá-lo e tornar a palavra da
autoridade sinônimo de verdade. Ainda que a autoridade declare, sem nenhum
pudor, que a Terra é plana e que “índio está se tornando humano como nós”, declarou
Bolsonaro em 24 de janeiro deste ano. Raciocínio que constitui base das
políticas eugênicas de extermínio.
Essa pós-verdade é uma severa ameaça à democracia e aos direitos humanos.
Porque prescinde da ciência, reveste-se de caráter religioso e não se
envergonha de sua ignorância. Não fala à razão, fala à emoção. Faz os ingênuos
acreditarem que as autoridades são oráculos divinos. E que os males da
sociedade jamais serão solucionados pela força da lei, e sim pela lei da força.
Toda a retórica “democrática” do poder é mero jogo de cena para abrir caminho
ao mais inescrupuloso autoritarismo, arraigadamente disposto a se perpetuar no
poder.
Essa a lógica predominante nos escribas, fariseus e saduceus do tempo de Jesus.
Ele, sim, foi a revanche de Deus perante o Templo, que se havia transformado em
“covil de ladrões” (Mateus 21, 13).
Frei Betto é
escritor, autor de “Um Deus muito humano” (Companhia das Letras), entre outros
livros.
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