por leonardo boff
As grandes chuvas com inundações desastrosas que afetaram muitas cidades
do Brasil e paralelamente os incêndios fenomenais na Austrália, seguidos
imediatamente de inesperadas inundações, constituem sinais inequívocos da Terra
de que nela algumas mudanças importantes estão ocorrendo. É praticamente
consenso de que estas mudanças para pior se devem à ação irresponsável dos
seres humanos (a era do antropoceno) em sua relação para com a
natureza e para com a totalidade do planeta Terra.
Os vários grupos de cientistas que sistematicamente acompanham o estado
da Terra atestam que, de ano para ano, os principais itens que sustentam a vida
(água, solos, ar puro, fertilidade, climas e outros) estão se deteriorando dia
a dia. Quando isso vai parar? O dia da Sobrecarga da Terra (the
Earth Overshoot Day) foi atingido no dia 29 de julho de 2019. Isto
significa: até esta data foram consumidos todos os recursos naturais
disponíveis. Agora a Terra entrou no vermelho e no cheque especial. Chegaremos
até dezembro? Se teimarmos em manter o consumo atual, temos que aplicar
violência contra a Terra forçando-a a dar o que já não tem ou não pode repor.
Sua reação a esta violência se expressa pelo aquecimento global, pelas
enchentes, pelas grandes nevascas, pela perda da biodiversidade, pela
desertificação, pelo aumento do dióxido de carbono e do metano e pelo
crescimento da violência social já que Terra e Humanidade constituem uma única
entidade relacional.
Ou mudamos nossa relação para com a Terra viva e para com a natureza ou
segundo S. Bauman,“engrossaremos o cortejo daqueles que rumam na direção de sua
própria sepultura”.Desta vez não dispomos de uma Arca de Noé salvadora.
Não temos outra alternativa senão mudarmos.Quem acredita no
messianismo salvador da ciência é um iludido: a ciência pode muito mas não
tudo: ela detém os ventos, segura as chuvas, limita o aumento dos oceanos? Não
basta diminuir a dose e continuar com o mesmo veneno ou apenas limar os dentes
do lobo. A mudança demanda atender a alguns dos seguintes marcos fundamentais.
Primeiro: uma visão espiritual do mundo.
Isso não tem a ver com a religiosidade, mas com uma nova sensibilidade e um
novo espírito de renúncia à uma relação violenta e meramente utilitarista da
natureza. Há que se reconhecer que ela tem um valor em si mesmo, somos parte
dela e que há de ser cuidada e respeitada como algo sagrado. Nisso consiste a
nova sensibilidade e espiritualidade.
Segundo: resgatar o coração, o afeto, a empatia e a compaixão. Esta
dimensão foi descurada em nome da objetividade da tecno-ciência. Mas nela se
aninha o amor, a sensibilidade para com os outros, a ética dos valores e a
dimensão espiritual. Porque não se dá lugar ao afeto e ao coração não há porquê
respeitar a natureza e escutar as mensagens que ela nos está enviando com as
enchentes e o aquecimento global. A tecno-ciência operou uma espécie de
lobotomia nos seres humanos que já não sentem seus clamores. Imaginam ser a
Terra um simples baú de recursos infinitos a serviço de um projeto de um
enriquecimento infinito. Temos que mudar de paradigma: de uma sociedade
industrialista que exaure a natureza para uma sociedade de conservação e
cuidado de toda a vida.
Terceiro: tomar a sério o princípio de cuidado e de precaução.
Ou cuidamos do que restou da natureza e regeneramos o que temos devastado,como
o MST que se propôs neste ano plantar um milhão de árvores nas áreas depredadas
pelo agronegócio, ou então nosso tipo de sociedade terá dias contados. A
precaução exige que não se coloquem atos nem se usem elementos cujas consequências
não podemos controlar. Ademais, a filosofia antiga e moderna já viu que o
cuidado é a pré-condição para que surja qualquer ser. É também o norteador
antecipado de toda ação. Se a vida, também a nossa, não for cuidada, adoece e
morre. A prevenção e o cuidado são decisivos no campo da nanotecnologia e da
inteligência artificial autônoma. Esta, sem sabermos, pode tomar decisões e
penetrar em arsenais nucleares e pôr fim à nossa civilização.
Quarto: o respeito a todo ser. Cada ser tem valor intrínseco e tem
seu lugar no conjunto dos seres.Mesmo o menor deles revela algo do
mistério do mundo e do Criador. O respeito impõe limites à voracidade de nosso
sistema depredador e consumista. Quem melhor formulou uma ética do respeito foi
o médico e pensador Albert Schweitzer (+1965). Ensinava: ética é a
responsabilidade e o respeito ilimitado por tudo o que existe e vive. Esse
respeito pelo outro nos obriga à tolerância,urgente no mundo e entre nós, sob o
governo de extrema-direita que nutre desprezo aos negros, índígenas,
quilombolas, LGBT e às mulheres.
Quinto: atitude de solidariedade e de cooperação. Esta é a lei
básica do universo e dos processos orgânicos. Todas as energias e todos os
seres cooperam uns com os outros para que se mantenha o equilíbrio dinâmico, se
garanta a diversidade e todos possam co-evoluir. O propósito da evolução não é
conceder a vitória ao mais adaptável mas permitir que cada ser, mesmo o mais
frágil, possa expressar virtualidades que emergem daquela Energia de Fundo que
tudo sustenta, da qual tudo saiu e para qual tudo volta. Hoje, devido à
degradação geral das relações humanas e naturais devemos, como projeto de vida,
ser conscientemente solidários e cooperativos. Caso contrário, não salvaremos a
vida nem garantiremos um futuro promissor para a Humanidade. O sistema
econômico e o mercado não se fundam na cooperação mas na competição, a mais
desenfreada. Por isso criam tantas desigualdade a ponto de 1% da humanidade
possuir o equivalente aos 99% restantes.
Sexto: fundamental é a responsabilidade coletiva. Ser
responsável é dar-se conta das consequências de nossos atos. Hoje. construimos
o princípio da auto-destruição. O ditame categórico é então: aja
de forma tão responsável que as consequências de tua ação não sejam destrutivas
para a vida e seu futuro e não ativem a auto-destruição.
Sétimo: colocar todos os esforços na consecução de uma bio-civilização centrada
na vida e na Terra. O tempo das nações já passou. Agora é o tempo da construção
e da salvaguarda do destino comum Terra e Humanidade. Sua realização não se
fará sem pormos em ação os marcos acima elencados.
Leonardo Boff é eco-teólogo, filósofo e escreveu: Como cuidar da
Casa Comum, Vozes 2019.
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