Por
Marcelo Barros
O Carnaval pode cumprir um papel de desafogo e
catarse em meio à luta duríssima que os mais pobres enfrentam na vida. No
entanto, pode também ser profecia de um mundo novo necessário e possível.
Há quem pense que o Brasil de hoje não está para Carnaval. A
desigualdade social aumenta de forma escandalosa. A violência toma conta de
nossas cidades. E a insensatez se torna modo de governar. Apesar disso tudo,
nesses dias, em todo o Brasil, já se respira o clima de Carnaval. No Rio de
Janeiro, Olinda, Salvador e outras cidades tradicionais, os blocos estão nas
ruas e as pessoas superam as dores e angústias do cotidiano através da dança,
das brincadeiras e da alegria do Carnaval.
Alguns grupos religiosos condenam o que consideram mundanismo.
Julgam o Carnaval como produto do diabo. Trata-se de um julgamento moral que
não olha as estruturas econômicas que estão por trás de tudo isso. É certo que
o Capitalismo quer transformar a vida e as relações humanas em mercadoria e explora
um erotismo meramente comercial. Fomenta o uso exagerado de bebidas e mesmo de
drogas. Isso cria um circulo vicioso com a violência urbana que explode em
alguns fenômenos de massa não bem canalizados. No entanto, apesar desses
problemas, toda festa, mesmo a mais aparentemente mundana, reúne as pessoas em
uma expressão de alegria. Por isso, tem uma dimensão nobre e, podemos dizer:
espiritual.
Em geral, as culturas antigas valorizam a festa como sinal e
antecipação do pleno e definitivo encontro com a divindade. No evangelho, Jesus
afirmou que o reinado divino vem ao mundo, qual música deliciosa que convida
todos a dançarem. Ele se queixa de sua geração que parece com pessoas que,
mesmo ao som da música, não reagem e ficam indiferentes (Lc 7, 31- 32). Ninguém
deveria ficar apático diante dos sinais do amor e da comunhão humana que tornam
a vida, mesmo sofrida, festa de alegria, inspirada pelo Espírito. Jesus começou
a anunciar o reinado divino no mundo, transformando água em vinho simplesmente
para que não faltasse alegria em uma festa de casamento (Jo 2).
As pessoas e comunidades marcam a vida pela cadência das
festas. Cada ano, o aniversário natalício recorda o dom da vida. Conquistas
importantes, como conclusão de um curso, obtenção de um novo trabalho e
casamentos são celebrados com festas. Todo país tem festas cívicas e cada
religião, festividades litúrgicas. O que caracteriza a festa é a liberdade de
brincar, o direito de subverter a rotina e de expressar alegria e comunhão,
através de uma comida gostosa, a música contagiante e a dança que unifica corpo
e espírito.
A fé faz parte da vida e da cultura do povo. Por isso, é
normal que nos símbolos escolhidos como temas de desfile carnavalesco e mesmo
nas letras dos sambas-enredos de escolas de samba, apareçam composições que
tragam mensagens de caráter religioso. Nesse ano, no Rio de Janeiro, a
Mangueira toma como tema do seu desfile a manifestação de Jesus a um Brasil do
povo e canta uma belíssima e oportuna profecia que tem como título a palavra de
Jesus: A
verdade vos libertará.
Assim testemunha que Jesus gosta de samba e se manifesta hoje na defesa da vida
dos pobres e na caminhada da paz e da justiça.
Nos
anos 70, Chico Buarque compôs a melodia para o filme “Quando o Carnaval chegar”. Essa comédia musical de Cacá Diegues tomava o
Carnaval como parábola da festa da libertação. Hoje, vivemos uma democracia
formal, mas ainda falta muito para alcançarmos igualdade social e uma justiça
que signifique verdadeira libertação para todo o povo. Por isso, continua
válida a esperança proposta na música que, no filme, Chico canta junto com
Maria Bethânia e Nara Leão: “Quem me vê assim, tão parado e distante, parece que eu nem sei sambar. Tou
me guardando pra quando o Carnaval chegar”.
É bom
que nos Carnavais que passam, não deixemos de esperar e nos preparar para o Carnaval
definitivo, mais profundo e transformador da vida.
MARCELO BARROS é monge beneditino e escritor.
Tem 57 livros publicados. O mais recente é Teologias da Libertação para os
nossos dias (Vozes). Email: contato@marcelobarros.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário