por leonardo
boff
A teologia da libertação não é uma disciplina a mais ao lado da história
dos dogmas, da liturgia, da moral e do direito canônico etc. É um modo
diferente de cumprir o ofício da teologia: no meio do povo
principalmente dos mais pobres e invisíveis. Por isso sua marca registrada é a
opção pelos pobres contra a pobreza e a favor da libertação.
Alguns fazem teologia para os pobres, coisa que a
Igreja nunca deixou de praticar. Outros fazem teologia com os
pobres, convivendo com eles e tentando pensar a mensagem cristã a partir de sua
cultura. Outros vão mais longe e fazem uma teologia como os
pobres, fazendo-se pobres, morando em favelas e ouvindo suas histórias e
descobrir na escuta das palavras deles a presença escondida de Deus.
Assim surgiu no Brasil com o recordado teólogo José Comblin, na
Paraíba, a teologia da enxada elaborada junto com os camponeses
depois do trabalho diário. Clodovis Boff criou a teologia pé no chão no
Acre da qual surgiram centenas de lideranças populares e políticas na Amazônia.
Recentemente está sendo articulada na América Latina, animada pelo grupo
Ameríndia (articulação de cristãos ligados à libertação) uma teologia da
libertação popular em mutirão com pessoas dos meios pobres e
periféricos. Usa-se a metáfora da panela borbulhante na qual
se prepara saboroso guisado. Segue o seguinte roteiro:
O que cozinhar? As narrativas dolorosas e amorosas dos humildes da Terra que trocam em
mutirão suas experiências de vida e as reflexões que daí surgem e que
encaminhamentos fazer.
Com que cozinhar? Com os condimentos, ervas e sabores próprios
de cada região. Cozinham-se com as narrativas singulares dos indígenas, das
mulheres, dos negros, dos camponeses. Cada grupo narra suas tragédias e suas
vitórias, suas dores e suas alegrias. Dizem: “há crises mas nós estamos cheios
de esperança; há silêncio e nós cantamos histórias; há fome de pão e de sentido
mas cozinhamos nosso guisado na panela borbulhante e comemos alegremente todos
juntos.
Quem são os cozinheiros? São os próprios membros das
comunidades populares pobres. Colocam-se em roda e em mutirão cada qual dá seu
testemunho, conta sua vida, mostra as chagas das torturas dos militares
repressivos. Ai aparece toda a tragédia vivida pelas grandes maiorias pobres e
marginalizadas desde o tempo da Colônia. Nunca foram escutados. Agora um escuta
o outro e rompem o silêncio secular. São cozinheiros exímios.
A partir de onde se cozinha? A partir dos invisíveis, daqueles que
as políticas sociais para os pobres não os alcança. Vivem um profundo desamparo
social. Escutar seus lamentos mas também suas alegrias com o mínimo. No mutirão
se perguntam: como Deus se revela na nossa pobreza? como Ele é apesar disso bom
e amoroso, pois nos faz viver e nos dá os filhos e as filhas, nossa grande
alegria.
Aqui cabe lembrar a Guamán Poma de Ayala, um inca da nobreza e educado
na Espanha. Anos depois, regressa e percorre todo o antigo império inca peruano
para “buscar os Cristos” escondidos e crucificados pelos colonizadores de ontem
e de hoje. Esse tipo de teologia narrativa criou até um termo novo: senti-pensar coletivamente:
sentir e pensar as antigas tradições mas também a realidade atual, da qual, juntos,
querem se libertar.
Os quatro c: Na gestação desta teologia narrativa ao redor da panela com o guisado
devem estar sempre presentes os quatro c: o canto: é
por ele que o pobres melhor se expressam; o corpo: sentir o
outro inteiro, sua pele, seu odor, sua voz, suas expressões de amizade e de
carinho; conto: escutar e mais uma vez escutar as narrativas de
cada um; a maioria são contos dolorosos; por isso o livro que mais citam é o de
Jó. Apesar de perder tudo e estar coberto de chagas e reclamar muito junto a
Deus, Jó nunca deixou de confiar nele e no final confessar:”eu sei dele não por
ouvir dizer mas porque meus olhos o viram”.
Câmara: as narrativas são gravadas ou filmadas em video para conservar a voz e a
imagem dos participantes. O teólogo que se inseriu totalmente neles conseguiu
esses instrumentos “modernos”para produzir um meio mais eficaz e persuasivo da
luta, da resistência e da vida dos pobres e dos humilhados da Terra. Tudo
sempre é devolvidas a eles.
Um jovem teólogo leigo argentino, Francisco J. Bosch, largou tudo e se
misturou com os últimos do Continente. Durante quatro anos percorreu oito
países animando mutirões (mingas) de teologia popular de libertação
junto aos pobres. Ele mesmo, poeta, cantor, desenhista e animador teológico,
recolheu esta experiência num livro comovedor a sair, com o título “Bendita
Mescla”. É pura e genuína teologia popular de libertação, feita pelos
próprios pobres e oprimidos e recolhida por ele.
Leonardo Boff é teólogo e escreveu com Clodovis Boff, Como fazer
teologia da libertação, Vozes, múltiplas edições 2013.
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