por Maria Clara Lucchetti Bingemer
O primeiro impacto após tanta expectativa pode ter sido negativo.
Tanto se ansiava por essa exortação pós-sinodal do Sínodo sobre a Amazônia e
parecia que não trazia as respostas tão aguardadas. Não apareceu uma
posição clara do Pontífice sobre a questão da ordenação de homens casados (viri
probati). Tampouco apareceu qualquer avanço sobre a questão da mulher
em termos ministeriais. Como sempre, Francisco é o Papa das surpresas. E
dessa vez a surpresa acontecia, mas não como se esperava.
Após alguns dias da apresentação da exortação, no entanto, é importante
não esquecer a importância da hermenêutica, ou seja, da interpretação.
Não existe conhecimento sem interpretação. Até as ciências que se
pretendem mais objetivas dentro do leque das ciências humanas e sociais
valorizam e privilegiam a interpretação. E neste momento em que, como Igreja e
como sociedade, digerimos a exortação pós-sinodal “Querida Amazônia” o convite
da hermenêutica se faz sentir com força.
Primeiramente há que recordar o que disse o Papa em sua mensagem
conclusiva dos trabalhos do Sínodo. Criticava duramente as elites
católicas que só se detinham nas coisas eclesiásticas e eram incapazes de
enxergar a importância do que é maior e atinge a todos, qual seja, o diagnóstico
da situação que hoje vive a Amazônia, com o problema ecológico, cultural e
humano. Segundo Francisco, esses grupos se fixam nas coisas menores, de
disciplina intra-eclesiástica, e não naquilo que é o coração da mensagem
conclusiva do Sínodo.
Para apoiar sua crítica, lançou mão do que disse o grande escritor
francês Charles Péguy: “ ...porque não têm a coragem de estar com o mundo eles
creem estar com Deus, porque não têm coragem de comprometer-se nas opções do
homem, nas opções da vida do homem, nas opções de vida do homem acreditam lutar
por Deus, porque não amam a ninguém creem amar a Deus.”
Em seguida, há que atentar para o que está escrito na exortação. E
ali aparece com muita clareza que o Papa considera o documento conclusivo do
Sínodo e a exortação pós-sinodal uma só coisa, unificada como desembocadura do
processo de sinodalidade percorrido pela Igreja em todo o processo do
Sínodo. É assim que diz: “Aqui, não vou desenvolver todas as
questões amplamente tratadas no Documento conclusivo; não pretendo
substituí-lo nem repeti-lo”. E continua: “Nesta Exortação
preferi não citar o Documento, convidando a lê-lo integralmente”.
Em linha de
continuidade e coerência, o Papa segue ao longo do texto da Exortação com sua
visão descentralizadora que quer dar mais força de atuação às igrejas locais. E
defende apaixonadamente a inculturação. Deixa claro que uma Igreja com rosto
amazônico é chamada inapelavelmente a valorizar a pluralidade e a riqueza das
culturas autóctones e de suas expressões religiosas. “É possível
receber, de alguma forma, um símbolo indígena sem o qualificar necessariamente
como idolátrico. Um mito denso de sentido espiritual pode ser valorizado, sem
continuar a considerá-lo um extravio pagão”.
A querida Amazônia,
de Francisco e nossa, é plural e diversa. E, por isso, nela “os crentes
precisam encontrar espaços para dialogar e atuar juntos pelo bem comum e a
promoção dos mais pobres”. Na diferença de cultos e expressões, a
prioridade da justiça pela qual clamam os pobres, inseparável do compromisso
com a Casa Comum deve ser a nota de uma Igreja com rosto amazônico.
Portanto, os sonhos
de Francisco para sua e nossa querida Amazônia devem ser bem
interpretados. E para isso não se pode dissociar o processo sinodal, o
documento conclusivo e a exortação pós-sinodal. Se o documento final do
sínodo é muito claro em pedir uma nova ministerialidade para servir as comunidades
amazônica, a exortação prioriza o diagnóstico das grandes questões da
região. Mas ao fazê-lo, deixa uma abertura para a questão dos
ministérios. As necessidades das comunidades amazônicas falarão mais
alto. E os bispos poderão tomar iniciativas mais ousadas, que o Papa
provavelmente apoiará.
O momento
qualitativo do sínodo e do documento fica preservado. O cuidado da criação é
prioridade absoluta. Trata-se de uma prioridade para o planeta e para a
humanidade, porque ambos não se dissociam. E o plano de Deus envolve
ambos. A Igreja quer estar a serviço desse sonho de Deus, feito de justiça e
cuidado do criado. E para isso deve pensar grande e agir em consequência. O
sonho de Deus é o que dá o tom aos sonhos do Papa para a querida
Amazônia.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da
PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo” (Editora Rocco), entre outros livros.
Copyright
2020 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER – Não é permitida a reprodução deste
artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização.
Contato: agape@puc-rio.br>
Nenhum comentário:
Postar um comentário